Em entrevista exclusiva, o chef Onildo Rocha fala sobre a riqueza da gastronomia brasileira
Desde o começo de sua carreira, o paraibano olha para seu país como a maior fonte de inspiração e aprendizados, com grande atenção para pesquisa de ingredientes
Foi por meio de sua família que Onildo Rocha entrou no universo da gastronomia. Ainda bem jovem, ganhou uma lanchonete para administrar de seus pais, que já tinham outras unidades em João Pessoa, na Paraíba. Foi a partir dela que abriu seu primeiro negócio próprio, a Casa Roccia, que continua em funcionamento. Depois, veio o restaurante Cozinha Roccia, que no momento está fechado – mas que reabre em breve, repaginado. Num passado mais próximo, em 2021, assumiu sua primeira cozinha na cidade de São Paulo, no Espaço Priceless, que abriga o Notiê e o Abaru e também sala de eventos.
Com uma mente inquieta, criativa e que sempre busca o conhecimento, Rocha desenhou um modelo de restaurante, especificamente para o Notiê, que oferece menu degustação, baseado em expedições pelo território brasileiro. Mas esqueça os clichês que estão por trás de cada temporada lançada por ele. Na estreia, foram oito meses de uma cozinha focada nos sertões. Atualmente, a Amazônia está em cartaz, mapeada a partir de seus ingredientes, que passam por muita análise e testes antes de chegarem ao destino, que é, claro, a mesa dos clientes. Em agosto deste ano, a nova temporada será revelada.
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Confira, na sequência, conversa com Onildo Rocha.
Versatille: O que é a culinária do Brasil para você?
Onildo Rocha: A culinária brasileira tem muita personalidade, muitas influências, muita cultura local, do ingrediente, e tudo isso constrói essa cozinha brasileira. O Brasil, por ser um país antiquíssimo e muito grande, acaba tendo muita coisa diferente. Você viaja dentro do Nordeste, e existem diferentes Brasis, a gente está falando de uma só região. Quando a gente viaja o Brasil inteiro, é alucinante. A gastronomia brasileira é essa diversidade de pessoas, povos e influências.
V: Como seu estilo próprio e a gastronomia brasileira se fundem?
OR: Eu não trabalhei fora do Brasil e usei isso como uma forma de me preservar de influências. Mas nunca quis seguir um padrão, que eu via muito na minha época de aluno, de que tudo era construído da mesma forma. Fui amadurecendo e entendendo que tinha que me pegar no produto, primeiro entendê-lo, para depois escolher a técnica. O meu processo criativo é conhecer o ingrediente, saber de onde ele vem, saber como as pessoas que têm proximidade com ele o manuseiam, porque daí vêm todas as diretrizes. Um exemplo: o maxixe, a minha vida inteira, eu o vi cozido, e nunca o vi ser consumido cru ou de outra forma. Eu precisava entender como as pessoas usavam e como ele era cultivado para, a partir daí, começar a fazer salada com maxixe cru e picles. Acredito que, quando entendi isso, foi o auge da maturidade da minha profissão, o que no fundo é simples. Não adianta querer reinventar a roda se a gente não entende profundamente o que está fazendo.
V: Em qual momento veio essa maturidade?
OR: Olha, Laurent Suaudeau tem uma grande participação nisso. Acho que foi há 16 anos, quando ele me falou que estava muito feliz de encontrar um cozinheiro do Nordeste, que tinha oportunidade de conhecer e estudar vários outros lugares, mas o que queria mesmo era entender o lugar em que nasceu e fazer uma cozinha que defendesse esse lugar. Acho que ali foi quando caiu a ficha de que eu estava no caminho certo. Quando a gente escuta um profissional da relevância que é Laurent, independentemente de ser relevante para mim como pessoa, mas que tem uma relevância na gastronomia brasileira, é muito interessante.
V: Como são as expedições que faz antes de alterar o menu dos restaurantes do Espaço Priceless?
OR: São muito enriquecedoras. Eu que criei esse projeto, ele veio para mim por meio da Mastercard, e a convite do meu sócio. Quando chegou às minhas mãos, a ideia era trazer grandes chefs internacionais, eu ficaria aqui como chef de residência. Nada impede, atualmente, de a gente fazer intercâmbio de chefs, é uma forma de poder falar de outros lugares. Mas pensei que a gente poderia fazer um restaurante brasileiro, baseado em pesquisa. Eu não queria trabalhar o Brasil como um todo, queria dividi-lo. E também não queria falar de biomas nem de regiões especificas. Na primeira viagem, escolhi o Rio São Francisco para abordar um sertão que não tivesse o estigma da pobreza e da seca. A gente faz a expedição, eu tenho uma equipe de filmagem, uma jornalista gastronômica comigo. É uma superpesquisa, e é a partir dela que surgem os menus da temporada. A pesquisa é mais focada no Notiê, mas o Abaru é tipo um diário de bordo, que vai acumulando o que passou. Atualmente, ele tem um pouco do cardápio dos sertões, e, agora, da Amazônia. O Notiê também muda completamente nas temporadas, inclusive cenograficamente. Também fazemos filmes e livros. Eu sou muito grato porque a Mastercard tem essa linha de desenvolvimento de pesquisa, e, se não fosse ela nos patrocinando, a gente não conseguiria fazer. A próxima temporada será em agosto.
V: Você tem uma linha de raciocínio para criar seus pratos?
OR: É curioso e desafiador. Eu sempre fico no meio da expedição pensando que eu sou louco, pensando que tem tanta gente que fica com o mesmo menu o tempo inteiro, e está tudo certo. Dentro do mesmo tema da temporada, eu mudo o menu três vezes. É uma inquietude absurda, que às vezes me dá um desespero, mas sempre me dá muito prazer. O meu processo criativo é em cima dos ingredientes. No caso da Amazônia, eu classifiquei os ingredientes que queria colocar no menu, depois eu abro um espaço para dividir o que combina com esses ingredientes, tanto proteico como não proteico. Depois faço uma lista de leguminosas, e, “por fim”, a gente vai para a cozinha fazer os testes.
V: Qual é um elemento essencial em seus pratos?
OR: Olha, eu já mudei muito diante de cada menu. Por exemplo, eu era muito ligado na crocância, mas o que não falta nos meus pratos é uma brincadeira de textura e acidez.
V: Quanto tempo leva o processo criativo?
OR: Eu sempre estou bem apertado com prazos, por isso que lanço um menu meio que no susto, e depois ele vai maturando e vai mudando. A pesquisa dura os oito meses, e, quando acaba, é quando está no auge, o que é triste, mas também é ótimo. Isso gera conhecimento e repertório. Entre a expedição e abrir a temporada, são três meses.
V: O que acredita que falta para a gastronomia brasileira conseguir mais espaço entre o público brasileiro?
OR: É uma questão de educação mesmo: o brasileiro tem essa síndrome que o do outro é melhor. Eu sofri muito isso, porque comecei a minha carreira em uma cidade de menos de 1 milhão de habitantes, no Nordeste do Brasil, tendo um pensamento que estava muito à frente do que estava acontecendo lá naquele momento. Eu comecei a fazer alta gastronomia com ingredientes do local, e não fui entendido. Tem uma fala minha que é “eu tive que ensinar o meu povo a comer a própria comida”. Eu só estava aplicando técnicas de forma diferente. Quando começaram a sair matérias fora e premiações, o público foi atraído. Foi uma certa reeducação alimentar. Eu fico muito feliz com a cena gastronômica da João Pessoa atual, porque tem muita influência do que fiz no começo. Desde produtores até pessoas da cerâmica, dos restaurantes. Eu fico feliz com cópias, ou inspirações, porque é sinal de que estou fazendo certo.
Por Giulianna Iodice | Matéria publicada na edição 130 da Versatille