Conheça o laboratório de ideias de Jefferson Rueda

O chef de A Casa do Porco, abre as portas do antigo lar de sua família, onde todas as suas receitas são criadas

Retrato de Jefferson Rueda
O chef Jefferson Rueda (Gabriel Bertoncel)

Em uma tigela funda, cubra uma peça de barriga de porco com uma salmoura de água, sal, açúcar e temperos a gosto. Após três horas na geladeira, retire a panceta e seque-a com papel toalha. Em seguida, ela deve ser confitada em banha e voltar novamente ao congelador por quatro horas. Corte-a em cubos, frite até dourar e sirva com goiabada por cima.

 

O torresmo do restaurante paulistano A Casa do Porco demanda uma dedicação muito maior do que um preparo qualquer do aperitivo. Não basta salgar a panceta, fatiar e fritar. Cada passo do modo de preparo da receita do chef Jefferson Rueda tem um quê de inspiração e experimentação por trás. Assim como a panceta, todos os pratos do estabelecimento que se tornou uma “instituição da carne suína” passam por um processo de testes antes de ser incluídos no menu e ir à mesa do freguês.

 

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Há um lugar especial para a criatividade que dá vida ao cardápio: o antigo lar da família Rueda, hoje carinhosamente apelidado de Lab. Fazendo jus ao propósito do espaço, o apartamento está localizado no edifício Copan, conhecido pela inventividade arquitetônica de Oscar Niemeyer, no coração de São Paulo. Ao sair do elevador no terceiro andar, o aroma guia o caminho até a porta de entrada azul-cobalto, junto de um adesivo com o rosto de sua esposa, Janaína Rueda, e uma pequena placa com a palavra “AXÉ”.

 

Quem recebe as visitas é um dólmã com o nome de Jefferson bordado, disposto de frente para a entrada. A peça foi usada em 2003 pelo chef no campeonato mundial Bocuse d’Or, no qual ele representou o Brasil. À esquerda, a cozinha com aparatos culinários metálicos, nichos de madeira e piso revestido de azulejo geométrico está movimentada. Quatro cozinheiras trabalham e preenchem o espaço, correndo de lá para cá. Entre elas, Jeffinho, como é apelidado, faz sugestões e comentários sobre o preparo. “Gosto de trazer desafios para elas”, comenta. “Tenho 26 anos de profissão. Aprendi tanta coisa, tenho tantas referências. Preciso me conectar com as novas gerações.” 

 

Os profissionais alternam turnos entre o restaurante e a cozinha do laboratório, onde são criados novos pratos para o menu. O papel de Rueda é ensinar e deixar aprender. Para o chef de cozinha paulista, nascido em São José do Rio Pardo, cozinhar é intuitivo: “Quando você ama o que faz, é tudo muito fácil. Consigo ver solução para um problema em dois minutos”. 

 

Jeffinho folheia o catálogo de pratos de 2006 do El Bulli, restaurante do chef espanhol Ferran Adrià

Jeffinho folheia o catálogo de pratos de 2006 do El Bulli, restaurante do chef espanhol Ferran Adrià (Gabriel Bertoncel)

 

 

À direita, na sala de estar, uma mesa comprida de madeira guarda cadernos, louças e embalagens de delivery vazias. Tudo ali funciona como uma peça de um quebra-cabeça prestes a ser montado. “Tenho milhões de caderninhos, passo o dia inteiro anotando.” Para criar um menu, o chef começa pelo conceito, tentando visualizar como será o resultado. A partir de então, ele define quais serão as técnicas, os ingredientes e as histórias contadas por cada prato. A conclusão é feita na cozinha por meio de testes. Um dos projetos em que Rueda está envolvido é o de criar um porco vegetariano, com textura de carne suína, mas feito de cogumelos. Ele ainda quer montar uma “sequência de evolução”, em vez de um menu degustação. “Acordo cozinhando e durmo falando em comida”, confessa. 

 

A parede ao fundo é da cor branca, mas quase todos os centímetros dela estão cobertos, seja por lembretes adesivos, seja por escrituras das mais diversas, como o letreiro grafitado com tinta vermelha “Laboratório de Ideias”. “A gente vai pregando várias coisas aqui. As ideias andam juntas, o tempo todo”, afirma. O mural ainda tem um mosaico com as palavras “Ciência”, “Matemática”, “Cultura”, “Geografia”, “História” e outros critérios levados em consideração para idealizar uma receita – além de uma placa ao centro com a frase “Never trust a skinny cook” – em português, “Nunca confie em um cozinheiro magro”.

 

Seguindo o curso da mesa, avistam as brises externas do Copan, com o véu azul da reforma pela qual tem passado nos últimos anos. Na janela estão penduradas fotos do chef com outros profissionais da área e de suas criações gastronômicas.

 

Carnes d laboratório de Rueda

O laboratório de Rueda tem duas geladeiras expositoras, que servem para curar as carnes antes de iniciar o preparo (Gabriel Bertoncel)

 

O ambiente em “L” tem uma segunda mesa, de alumínio, com esculturas e origamis em formatos de porco, além de utensílios de cozinha na prateleira inferior. “Aqui estamos em constante movimento. Agora queremos tirar a mesa de madeira e colocar mais fogões”, conta Rueda. Com a segunda onda da pandemia e o decreto da fase vermelha no estado, A Casa do Porco fechou novamente. Não fosse por isso, estaria servindo o novo menu, de outono-inverno, chamado “Criar, plantar, colher, cozinhar”. A rotina do Lab tem como base uma experimentação técnica, sempre antecipando as temporadas. “Minha cabeça já está pensando no cardápio primavera-verão.”

 

A sala de estar também abriga uma biblioteca, com duas grandes prateleiras e um móvel com mais três andares de livros coloridos de gastronomia. A coleção, que conta com livros em diversos idiomas, adquiridos pelo mundo, foi mantida no laboratório mesmo após a mudança.

 

O apartamento dos Rueda no Copan é carregado de história. Eles se mudaram quando Janaína estava grávida do primeiro filho e planejava abrir o Bar da Dona Onça, pois dessa forma poderia ficar próxima ao bebê durante o trabalho. Foi a primeira casa que compraram. “Moramos aqui até 2016. Na época, já tínhamos outro apartamento, também no centro, mas continuamos vivendo aqui. A gente só fazia festa no que moramos atualmente, que é grandão. Íamos embora junto com os convidados. Estávamos apegados. Mesmo mudando para o outro, o coração continuou aqui.” Com a mudança, Rueda sentiu a necessidade de um lugar para estudar e pesquisar sobre gastronomia, e assim transformou a antiga moradia em laboratório.

 

Jefferson Rueda segura peça de gordura suína de um porco

Uma peça de gordura suína de um porco que pesava 250 quilogramas (Gabriel Bertoncel)

 

O espaço também serve para receber visitas, que ficam hospedadas nos quartos ao fundo. “Já recebemos o Ferran Adriá [espanhol considerado um dos melhores chefs do mundo] aqui para comer uma feijoada com a gente. Foi no Carnaval retrasado. A Janaína levou ele no meio da bateria de uma escola de samba, a Vai-Vai. O samba-enredo era sobre orixás, o cara amou.”

 

A troca com outros chefs também se transforma em ideias. É por isso que ele recomenda: “Quando você for para São José do Rio Pardo, experimente o torresmo do Carlão. O cara está fazendo isso há 50 anos, é uma maravilha”. O segredo de sua receita, talvez, tenha vindo de lá. “Tudo é inspiração, tudo tem um porquê, tudo tem uma história. É isso que me move. Fazer uma comida que não é só bonita e gostosa, mas que mostre a cadeia de pessoas que está por trás.”

 

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Para Rueda, a pandemia permitiu enxergar melhor todo esse processo e fez com que ele retornasse a suas raízes em São José do Rio Pardo. Lá, comprou um sítio e iniciou o projeto de uma escola de cozinheiros, para transmitir o valor dos alimentos e os conhecimentos da terra. “Cheguei à conclusão de que minha vida vai ser pelo amor”, conclui. 

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