Alessandra Montagne, a chef brasileira que conquistou a França

Dona de uma trajetória inspiradora, a carioca criada em Minas Gerais é referência em cozinha sustentável e autêntica

Alessandra Montagne

A preparação para a entrevista com a chef Alessandra Montagne foi uma experiência imersiva. Enquanto lia as matérias de outros jornais e revistas, o tempo passava lentamente e eu me fascinava, entendendo cada vez mais o seu sucesso. Sua história já virou livro – infelizmente sem tradução para o português até o momento –, e um filme está sendo produzido. Claramente não fui a única arrebatada pela sua personalidade, mas naquele momento eu era a jornalista que a entrevistaria em algumas horas. A dúvida era: como fazer jus a sua trajetória, sem ser repetitiva? 

 

Alessandra já contou sua história diversas vezes, em português e francês, e costuma se emocionar ao relembrá-la. Nascida no Morro do Vidigal, no Rio de Janeiro, e criada em Poté, pequena cidade de Minas Gerais, a chef teve uma infância humilde e, aos 22 anos, abraçou a oportunidade de se mudar para Paris para tentar construir uma vida diferente. Sem falar a língua local e distante da família, sua ida para o exterior não foi glamourosa, como estamos acostumados a assistir nas produções hollywoodianas. Na realidade nua e crua, a brasileira precisou superar barreiras e viver momentos de muita resiliência.

 

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Nessa época, seu escape era a cozinha. Era por meio da comida – simples, cotidiana e aconchegante, como um abraço mineiro – que conseguia se comunicar com as pessoas que conhecia. Como vocês podem imaginar, apenas um livro pode traduzir com riqueza de detalhes tudo o que aconteceu nesse período. O resumo é: após mais de uma década na capital francesa, incentivada por amigos que amavam sua comida, ela decidiu cursar gastronomia e ingressar profissionalmente na área, inicialmente com venda de marmitas no bairro em que vivia e, depois, com seu primeiro restaurante, o Tempero, que foi sucesso imediato. 

 

Com filas que dobravam o quarteirão, o burburinho sobre o seu estabelecimento chamou a atenção da cena gastronômica parisiense, o que fez com que o famoso chef Alain Ducasse decidisse apadrinhar a brasileira. Hoje, Alessandra comanda o Tempero e o Nosso, seu segundo restaurante, e apresenta uma cozinha com muita técnica e valorização de ingredientes. O reconhecimento também a fez ser escolhida por Ducasse como um dos nomes do seleto grupo de chefs que vão assumir a operação dos restaurantes do Museu do Louvre nos próximos dez anos.

 

Dona de uma história inspiradora, Alessandra merece – e tem – os holofotes sob a sua trajetória. Nos trechos seguintes, abordaremos a profissional por trás de toda a superação. Durante a entrevista, que seguiu um rumo descontraído, a chef compartilhou detalhes e curiosidades sobre o seu trabalho na cozinha, que envolve preocupação ambiental, valorização dos pequenos produtores e liberdade criativa. Conheça algumas histórias – não tão populares – da chef brasileira.

 

 

Filé-mignon de vitela com purê de abóbora com cravo, picles de abóbora, crispy de repolho, trufa negra e rôti de vitela

 

Cozinhar é uma arte – e Alessandra pede liberdade artística 

 

Quem planeja visitar um dos restaurantes comandados por Alessandra Montagne precisa se preparar para a seguinte questão: talvez a casa não tenha um cardápio à disposição – e nem mesmo o tão polêmico QR code com os pratos do dia. “Eu gosto de ter liberdade para mudar o menu dos restaurantes, então imprimo o mínimo possível de papel. Se no início da noite eu decidir que não quero usar frango, mas sim coelho, eu vou fazer isso. É o meu restaurante”, explica a chef. Sendo assim, para que não haja nenhum mal-entendido e desperdício de papel, os funcionários estão preparados para explicar o que será servido a cada cliente. 

 

“A exceção é a hora do almoço, momento em que recebemos muitos executivos. Nesse caso, temos alguns cardápios de papel que mudam algumas vezes na semana. Já no período da noite o clima é outro, descontraído, então a experiência é mais livre.” Para ela, essa liberdade tem vários benefícios. Cozinhar com prazer é um deles, mas a organização dos ingredientes para evitar desperdícios também faz parte do combo. “Se algum alimento está com a data de validade próxima, precisamos utilizá-lo para que não acabe no lixo. É nosso dever essa consciência na hora de comprar e cozinhar”, reforça.

 

Precursora da compostagem

 

Seguindo o tema da preocupação ambiental, a brasileira conta ter vivido uma situação um tanto curiosa quando começou a realizar a compostagem em seus restaurantes. “Eu não tenho lixo na minha cozinha e os resíduos vão direto para a composteira, mas anos atrás um fiscal da prefeitura tentou me multar por conta disso. Ele queria fechar o restaurante”, recorda a chef. Na época, o processo de reciclagem do lixo orgânico ainda não era tão popular, o que rendeu uma breve discussão com o profissional.

 

Desde o início de 2024, no entanto, a França implementou uma lei chamada Compost Obligatoire, que determina que famílias e empresas devem depositar todo o lixo orgânico que produzem em pequenos coletores próprios ou em um ponto de coleta municipal, para que seja realizada a compostagem. Digamos que Alessandra foi precursora na temática: “Na realidade, eu sou uma pessoa ecológica. Tomo banho rápido, separo o lixo e evito carne vermelha no dia a dia. Tudo tem uma lógica, e a compostagem faz parte disso”.

 

De volta para a roça

 

Em Poté, Minas Gerais, a chef amava os momentos que antecediam o almoço em volta do fogão a lenha, quando as mulheres de sua família se reuniam para conversar, enquanto descascavam os legumes. Para ela, essa era uma ocasião de conexão inexplicável. Hoje, visitar as fazendas do entorno parisiense é uma forma de reviver sentimentos similares. Alessandra está sempre no campo para contato com os pequenos produtores e produção do programa Le Goût des Rencontres, apresentado por ela e exibido semanalmente pelo canal France 3. Em cada episódio, ela visita um produtor rural francês – de criadores de patos e gansos, em Périgord, às queijarias da Normandia. 

 

“Tem muitos produtores apaixonados pelo que fazem. Trabalhar com pessoas assim faz toda a diferença. Você quer virar fazendeira quando visita o local”, brinca. “Eles não fazem por falta de opção, mas sim porque são apaixonados. Eu respeito tanto o trabalho deles que quero cozinhar o melhor prato possível com seus ingredientes. Seria um pesadelo desperdiçar um alimento que eles cultivam com tanto carinho. Por isso é tão importante a proximidade com os produtores em uma cozinha responsável. Mais de 90% dos insumos que eu utilizo são provenientes da região parisiense.” 

 

Nesse mesmo pilar, Alessandra também preza pelo uso integral dos ingredientes. “Trabalho com um produtor de caviar de Bordeaux e descobri que a carne do peixe esturjão é muito gostosa e ninguém usa. Então, eu compro o peixe também e faço assado. Fica delicioso”, revela.

 

Mistério da Ubisoft 

 

A inauguração do Tempero, primeiro restaurante da chef, é envolta por um mistério: “Eu gastei todo o dinheiro na reforma e nem consegui fazer cartões de divulgação. Realmente achava que não teria muito movimento, tanto que não contratei funcionários para cuidar da louça e do salão. Quando vi que tinha fila na porta, comecei a chorar de desespero. Até hoje eu não consigo explicar”, relembra, entre risadas.

 

“Depois eu descobri que na frente do restaurante tinha um prédio com uma empresa chamada Ubisoft, gigante de jogos eletrônicos. Na época, me disseram que alguns funcionários estavam esperando o estabelecimento abrir desde que eu comecei a reforma. Estavam ansiosos por um lugar novo para o horário de almoço.” Uma jogada de sorte do destino, mas que não seria nada sem o talento da brasileira. O tempero de Alessandra conquistou os clientes e fez com que eles indicassem sua cozinha para familiares e amigos. Desde sua abertura, a casa nunca esteve vazia. O resto é história – daquelas boas.

 

Por Beatriz Calais | Matéria publicada na edição 136 da Versatille

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