Versatille 116 – Capa: Um novo olhar para o futuro

Diante das adversidades trazidas pelo ano de 2020, um texto para refletir e repensar costumes, relacionamentos, metas e, principalmente, propósitos de vida

POR MARIA ALICE PRADO | Capa

Matéria publicada na edição 116 da Revista Versatille

 

Há tempos se fala em propósito, palavra que se consolidou (ainda mais) no imaginário mundial após a humanidade se ver imersa no perigo de um inimigo invisível que paralisou a rotina em todos os continentes. Pela primeira vez em seus 21 anos de história, a Versatille optou por uma capa sem modelos e nem celebridades, que deram lugar à obra “Eris”, da artista Luna Buschinelli. No lugar de entrevistas ou perfis, um texto que convida você a repensar seus caminhos de 2020 em diante.

 

As peças do jogo da vida, que um dia pensávamos ter em ordem, foram todas embaralhadas pela pandemia como em um piscar de olhos. Dormimos em um dia com abraços, planos e expectativas e acordamos em uma realidade sem precedentes nas últimas gerações. O mundo se viu preso em um distanciamento imposto muito além dos espaços físicos: a norma também se configurou em isolar cada um com os próprios pensamentos.

 

Se há uma palavra que foi incorporada ao dicionário e à rotina das pessoas a partir da pandemia do coronavírus, ela se chama autoconhecimento. Em um cenário de angústias e incertezas, fomos colocados à prova com nós mesmos para tirar proveito de situações nunca vistas dessa perspectiva. O olhar para dentro nos fez enfrentar desafios – que, por muito tempo, foram evitados – nas relações familiares, no trabalho, nos relacionamentos e, principalmente, nos próprios objetivos.

 

Desafios porque, sem perceber, somos impulsionados a viver sonhos e planos que não são nossos. A necessidade de provar eficiência, produtividade e alta performance desde muito cedo nos faz perder características essenciais para a condição humana: o processo de se conhecer, ao passo que os níveis de consciência, pertencimento e maturidade emocional são construídos.

 

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(Foto: Unsplash/Jamie Street)

 

De repente, uma onda avassaladora tira tudo o que pensamos que conhecíamos sobre a própria vida. E, com a sensação de vazio, chega a vontade de virar a vida de cabeça para baixo. De fazer uma grande mudança. O desejo de realizar ou conquistar algo veio à tona de maneira tremendamente promissora.

 

E isso nada mais é do que traçar e buscar seu propósito. Esse sentimento tomou conta dos pensamentos de muita gente, mesmo, muitas vezes, sem que possamos compreender a totalidade do que ele significa. Propósito, entre suas inúmeras interpretações, pode ser explicado como a razão que faz alguém levantar todos os dias – mesmo nos mais cinzas e impossíveis – com motivação para alcançar alguma coisa. Existe um termo japonês que explica a sensação: é o ikigai, que significa “razão de viver”.

 

Buscar por você mesmo

De acordo com essa filosofia, todos têm um ikigai. Descobrir qual é o seu requer uma profunda e, muitas vezes, extensa busca de si mesmo. Muito além de apenas um mantra, o ikigai é uma doutrina cientificamente estudada sobre um povoado japonês – não à toa, o Japão tem expectativa de vida que chega a 84 anos. O teórico Ken Mogi, autor do livro Ikigai: Os Cinco Passos para Encontrar Seu Propósito de Vida e Ser Mais Feliz, dedicou anos de estudo à filosofia para concluir que não se trata apenas de viver por um longo período, mas de encontrar sentido para persistir tanto tempo na caminhada.

 

(Foto: Unsplash/Content Pixie)

 

O termo vem da compreensão do estilo de vida dos moradores centenários de Okinawa, no sul do Japão. O padrão de longevidade extremamente fora do comum instaurou a crença de que a razão de tantos anos de vida seria o ikigai. O surpreendente é que, na contramão de obter sucesso e grandes metas impostas por contratos sociais convencionais, o ikigai enxerga paixão pelos detalhes antes de buscar por objetivos profundos.

 

Mogi explica que o conceito tem a ver com sair do piloto automático e encontrar, por mais simples que sejam, ações, valores e metas que façam os olhos saltar. Às vezes, esse propósito pode ser ajudar pessoas, escrever, regar uma planta ou cantar. O autor, no entanto, diz que, diferentemente de um hobby, o conceito não se trata de obter uma gratificação instantânea e passageira. Mas, sim, de sentir que tudo o que parece rotineiro e insignificante no plano maior da vida, na verdade, passa a ter o objetivo de entregar felicidade.

 

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Okinawa, Japão (Foto: Unsplash/Vladimir Haltakov)

 

Praticar essa missão e aplicar a teoria na vida real não parece fácil – e, na verdade, não é para ser. Decidir trilhar outro caminho que não o curso natural do que nos foi imaginado exige muita coragem e aceitação de riscos. A pandemia abriu as portas para encontrarmos paixões, metas e objetivos que certamente não faziam parte dos planos do “antigo normal”. Mas, para abraçar a oportunidade, é preciso entrar em contato com fraquezas, insegurança e fragilidade.

 

“SE QUEREMOS MAIOR CLAREZA EM NOSSO PROPÓSITO OU VIDAS ESPIRITUAIS MAIS PROFUNDAS E SIGNIFICATIVAS, A VULNERABILIDADE É O CAMINHO. É UM RISCO QUE TEMOS DE CORRER SE QUISERMOS EXPERIMENTAR CONEXÃO.” BRENÉ BROWN

 

 

Fraquezas que viram força

É o que diz Brené Brown, autora de cinco best-sellers do New York Times e palestrante do TED Talk “The Power of Vulnerability”, que já acumula quase 50 milhões de visualizações. A professora e pesquisadora da Universidade de Houston tem como objetivo declarado desmistificar a vulnerabilidade ao mostrar quanto esse sentimento é essencial para a evolução pessoal. Após anos de estudos, centenas de entrevistas e experimentos com diferentes núcleos de indivíduos, Brené se deparou com dois grupos de pessoas na sociedade: as que têm um forte senso em relação ao próprio valor e as que estão constantemente se questionando.

 

Depois de se perguntar qual o segredo por trás desse grupo mais seguro de si, ela chegou à conclusão que essas pessoas tinham algo em comum: escolheram abraçar sua vulnerabilidade. “Elas falavam da disposição de fazer algo para o qual não há garantias. Viam isso como fundamental”, explica a pesquisadora em sua palestra. Isso significa dizer “eu te amo” primeiro, investir em uma carreira nova ou entrar em um relacionamento que pode ou não funcionar, por exemplo.

 

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Brené Brown (Reprodução Youtube/TED Talks)

 

Vulnerabilidade, na prática, significa mergulhar em situações que aceleram o coração, embrulham o estômago e, muitas vezes, permitem que os outros vejam nossas fraquezas. Mas, por outro lado, Brené enxerga esses sentimentos como uma abertura para coragem, amor, alegria e criatividade. Convenhamos, se tem um momento em que isso parece bem­ -vindo é o espinhoso ano de 2020.

 

A consequência de abrir feridas trancadas no lugar mais profundo dos pensamentos é perceber em si mesmo imperfeições e sentimentos dos mais variados relacionados à fragilidade. A pesquisadora afirma, no entanto, que os momentos mais significativos da vida das pessoas acontecem quando as luzes geradas pela coragem, pela compaixão e pelo vínculo com outros indivíduos são acionadas, e as vemos brilhar na escuridão das batalhas internas.

 

O bônus da imperfeição

Tal conceito de vulnerabilidade proposto pela autora trata da incessante busca pela perfeição nos mais variados âmbitos da vida: no trabalho, nos estudos, em casa ou em relacionamentos. Em seu livro A Coragem de Ser Imperfeito, Brené mostra que o perfeccionismo é apenas um escudo para evitarmos ser criticados, julgados e culpados, mas, no fundo, ele impede que sejamos vistos em nossa essência.

 

(Foto: brenebrown.com)

 

Quando a necessidade de atingir a perfeição é deixada para trás, nascem as emoções ligadas ao amor e às razões de viver dentro de cada um. Segundo a professora, em um mundo repleto de problemas complexos e possibilidades intermináveis, precisamos de líderes corajosos, de uma cultura da coragem. Aceitar que temos nossos medos e limites é essencial para estimular a coragem – e só chegaremos lá quando aceitarmos nossa vulnerabilidade.

 

Hoje, mais do que nunca, percebemos quanto demonstrações de afeto e a busca pela felicidade não podem esperar. A capacidade de nos sentirmos ligados a outras pessoas e em conexão com o mundo é, em conclusão, o propósito de estarmos aqui. Encontrar o motivo de levantar todos os dias só é possível se estivermos dispostos a aceitar todos esses riscos.

 

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Grandes líderes e o propósito

Outra voz brilhante da era do propósito é o consultor britânico Simon Sinek, que se tornou celebridade mundial ao defender que as empresas bem-sucedidas são comandadas por líderes capazes de mostrar que, mais importante do que “o que” elas vendem, é saber “por que” elas vendem. Ele aborda, por exemplo, o significado por trás da invenção do Flyer, dos irmãos Wright – considerado por muitos o primeiro avião tripulado da história a ganhar os céus, embora isso seja contestado fortemente aqui no Brasil de Santos Dumont. O autor explica que a dupla não pretendia criar o avião pelo que ele era, mas sim pelo que ele significava: um marco que mudaria o mundo.

 

Em outros termos, objetivos e metas são conquistas específicas que tentamos realizar diariamente. Já um propósito de vida é a razão pela qual temos tais metas. O propósito é como um legado, é a forma pela qual você quer ser lembrado. Sendo assim, é o combustível que nos impulsiona a fazer o melhor e a alcançar o que desejamos. Mais do que isso: entender a razão de ser de seu negócio vai atrair funcionários com a mesma visão de mundo e, em outro momento, consumidores com perfis alinhados ao seu.

 

(Foto: Reprodução Instagram @simonsinek)

 

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Recomeço após 40 rejeições

Outro pensador que acredita no poder da vulnerabilidade para o encontro com o propósito é Jay Shetty, dono do maior podcast do mundo sobre o assunto, o On Purpose. Para quem não conhece, basta dizer que ele tem entrevistados do quilate de Gisele Bündchen. O autor enfrentou uma dura jornada até chegar ao sucesso de hoje, que permite a ele compartilhar com seus admiradores de que maneira encontrar a razão de viver, administrar negatividade, construir confiança e superar medos.

 

ENCONTRAR UM SENTIDO QUE SUSTENTE VOCÊ DE FORMA INTEGRAL E SAUDÁVEL É ELIMINAR DE VEZ A PRESSÃO DE VIVER A AGENDA DE OUTRAS PESSOAS. A BUSCA PELO PROPÓSITO NÃO POSSUI CAMINHO CERTO NEM ESTRADA PREDEFINIDA. A JORNADA É INTEIRAMENTE PESSOAL E INCLUI APOSTAR EM SI, APRENDER A SE RESPEITAR, TOMAR TOMBOS E FAZER DESCOBERTAS.

 

Após se formar na Universidade de Londres e receber mais de 40 respostas negativas para empregos em grandes corporações, Shetty se viu sem rumo. A insatisfação o fez buscar o encontro consigo mesmo de uma maneira nada convencional: decidiu passar sete anos como um monge. Uma decisão que por muitos seria considerada delirante, mas, na verdade, acabou criando a vida de seus sonhos. Acordava às 4 horas da manhã e meditava por até oito horas em um único dia – tudo isso em busca do controle das próprias emoções, de foco e da felicidade.

 

(Foto: Reprodução Instagram @jayshetty)

 

Os estudos de Jay Shetty resultaram em mais de 6,5 bilhões de visualizações em vídeos pela Internet, além do livro Think Like a Monk (em português, “Pense como um monge”), lançado em abril deste ano. Aquele velho ditado que diz “encontre sua paixão e você nunca trabalhará um dia em sua vida” pode resumir o legado do autor. Segundo o ex-monge, perguntar-se “no que eu sou bom?”, “o que eu amo fazer?”, “como eu sou pago pelo que amo?” e “do que o mundo precisa?” é a chave para desbloquear sua paixão e encontrar seu propósito.

 

“PRECISAMOS ENTENDER QUE AS COISAS QUE REALMENTE QUEREMOS, QUE SÃO PROFUNDAMENTE SIGNIFICATIVAS E QUE NOS PREENCHEM DE FATO REQUEREM PACIÊNCIA, TRABALHO E ENERGIA.” JAY SHETTY

 

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(Foto: Reprodução Instagram @jayshetty)

 

Para Shetty, a procrastinação é um dos maiores bloqueadores da busca pelo propósito. Nasce do desejo de atingir a perfeição antes do primeiro passo. O único antídoto para esse vício constante seria, portanto, a ação – apostar no risco, fazer algo e obter respostas para toda e qualquer melhoria. O autor entende que pensar é essencial, mas pensar demais irá travar o progresso de qualquer um antes mesmo de começar. A superação desses pensamentos negativos entrega calma e, por fim, o caminho para encontrar o objetivo que reside dentro de cada um.

 

O autor defende, além disso, que “o propósito é paixão pelo serviço”. Quando usamos nossa paixão em fazer a diferença na vida de outras pessoas, isso se torna um propósito. A frase ilustra a correlação com os diversos sentimentos trazidos à tona pela pandemia na sociedade. Em alguma medida, todos fomos obrigados a olhar para o outro. Sentimentos de empatia e solidariedade tomaram conta de muitas pessoas que puderam compreender que a coletividade é peça fundamental para a sobrevivência de todos. Resta torcer para que isso se prolongue e, no tão propalado “novo normal”, vire nosso padrão de comportamento.

 

Para quem pensa em ir para o Japão em busca de uma nova vida, também poderá procurar empregos aqui.