Sarapatum, atum de sol e torresmo de membranas: André Saburó explica a versatilidade do atum na gastronomia
Conhecido como boi do mar, o peixe oferece alto aproveitamento de sua carne e desperta interesse e curiosidade
No início de 2024, a Versatille lançou uma nova série de vídeos, batizada de “Desvendando a Gastronomia”, veiculada em seu Instagram. O objetivo do conteúdo é focar em um ingrediente específico e conversar com especialistas e chefs sobre o diferencial deste produto no dia a dia da cozinha. O primeiro vídeo foi sobre os tipos de mel, que também já ganharam uma matéria especial na revista e republicação no site.
Já o segundo é sobre o atum, tendo como porta-vozes o especialista e chef André Saburó, o chef Uilian Goya, do Goya Zushi, e a chef Catarina Ferraz, do Restaurante Cais. Os três falam sobre os diferenciais do peixe, enquanto Goya e Catarina também colocaram a mão na massa para mostrar a preparação de alguns pratos que possuem o atum como grande protagonista.
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O objetivo inicial era a produção exclusiva do vídeo, mas a entrevista com o chef André Saburó, o maior especialista em atum do Brasil, abriu as portas para uma matéria, afinal, a conversa foi tão boa, que seria um desperdício não compartilhar por aqui. A seguir, confira o bate-papo completo com Saburó.
Não deixe de assistir o reels publicado no Instagram da Versatille.
Versatille: Qual o diferencial do atum no mercado?
André Saburó: O atum é um peixe que a gente estuda há muitos anos, sempre tentando melhorar a parte prática de corte e o aproveitamento total do peixe. Eu chamo o atum de boi do mar. Muitos chamam de filé mignon do mar. Por ser um peixe tão grande, com características interessantes, antigamente eu via bastante desperdício. Muitas partes sendo jogadas no lixo. Quando começamos a trabalhar com o atum, decidimos fazer um trabalho de aproveitamento total do pescado. Começamos a tratar como se fosse um boi. Do boi a gente aproveita tudo, então vamos tentar fazer o aproveitamento total do atum também.
V: É daí que vem a versatilidade do atum na gastronomia?
AS: Sim! Um único peixe pode ser usado em vários preparos. Além disso, temos diversas espécies de atum consumidas no mercado. Temos o bluefin, por exemplo, que é considerado o topo da cadeia dos atuns. Ele é tido como o rei dos mares, porque fica muito grande e pode alcançar até 600 kg. É uma fúria do mar. Muito apreciado pelo teor de gordura que tem e pela coloração intensa de sua carne.
Embora não sejam como o bluefin, as outras espécies de atum também são grandes, o que abre espaço para aproveitarmos várias partes do animal. É possível alcançar em torno de 8 a 9 tipos de corte em um sashimi, com tonalidades diferentes. É praticamente impossível fazer isso com outro tipo de peixe. Muitos restaurantes recebem apenas o lombo do atum, mas quando se recebe o peixe inteiro, pode-se aproveitar até a carne por trás da bochecha, que é saborosa.
V: Pode exemplificar alguns pratos que você já criou com o atum?
AS: Fazemos um prato aqui em Recife que chama stinco de atum. Nós utilizamos o pedúnculo caudal, aquela parte triangular da cauda, no final. Cortamos ali e trabalhamos como se fosse um stinco de porco ou cordeiro. Existe uma concentração de músculo e colágeno nesta região. Então, com a técnica correta, fica muito suculento.
Também fazemos o “sarapatum”. Utilizamos miúdos, cartilagens, membranas, linha de sangue, coração e músculos. Cortamos tudo e fazemos uma versão diferente do sarapatel, que é um prato muito comum aqui em Recife. É um trabalho de aproveitamento total do pescado aplicando uma boa técnica. Um prato muito gostoso, nutritivo, que tem uma ligação muito forte com o público pernambucano.
Fazemos um atum de sol aqui também. Pegamos uma parte do peixe chamada soft akami, que é bem próxima à parte central da espinha dorsal do atum. Uma carne mole e bem irrigada, que se assemelha à fraldinha. A partir disso, aplicamos um processo idêntico ao da carne de sol, mas com metade da quantidade de sal, porque o atum reage diferente. Quando pronto, servimos com musseline de inhame e queijo coalho. É um prato com aceitação bem grande. Conseguimos até fazer torresmo de atum com as membranas desidratadas e fritas por imersão. É possível criar muita coisa.
V: E sempre tivemos acesso a atuns de boa qualidade no mercado nacional?
AS: Aqui em Recife eu tenho contato com uma empresa que trabalha há mais de 40 anos com exportação de atum para o Japão e para os Estados Unidos. Há uns 13 anos eles começaram a operar a partir do porto de Recife e, na época, entraram em contato comigo para saber se eu gostaria de conhecer o trabalho. Foi nesse momento que eu conheci a operação e me encantei. O atum de exportação tem outra qualidade, mas até o momento ele ia todo para fora do país. Comecei a utilizar esse peixe e outros chefs também mostraram interesse, como Alex Atala e Claude Troisgros. Quando os chefs começaram a trabalhar por aqui, conseguimos fazer um mercado interno e melhorar a qualidade do peixe servido no Brasil.
V: Por que esse atum direcionado para a exportação tem uma qualidade bem mais expressiva?
AS: Para isso, é importante entendermos um pouco sobre o funcionamento do corpo de um atum: ele controla sua temperatura corporal por meio dos batimentos cardíacos. Quando está nadando a 20 metros de profundidade, a água é quente. Quando está a 150 metros, a água está muito gelada, então ele aumenta o fluxo cardíaco e consegue aquecer o corpo. O que acontece na hora de uma pesca tradicional? Quando você fisga o peixe, ele começa a brigar e ficar estressado. Obviamente o batimento cardíaco aumenta. As enzimas de estresse são jogadas na corrente sanguínea e ele sobe ao barco brigando muito. O peixe fica se debatendo e morre. Ele está fresco? Sim. Mas o sangue ainda está quente, porque o corpo estava no auge do estresse. Com isso, a tonalidade e a maciez da carne mudam.
Em uma pesca para exportação, o processo é feito em um sistema chamado longline: um carretel gigante que é preso em uma bóia e vai soltando uma isca presa em anzol. Quando o peixe come, ele fica rodando em círculos. Quando se recolhe esse carretel, o peixe sobe vivo ao barco. Nesse momento, inicia-se um processo de morte cerebral. O peixe apaga e não sente mais nada, mas o coração continua batendo. A partir disso, uma incisão de três centímetros é feita na região das barbatanas laterais, alcançando a aorta principal. Com esse corte, o animal sangra e drena o sangue quente para fora do corpo, inclusive com as enzimas de estresse que podem estar presentes. O peixe é imediatamente limpo e colocado em um tanque de água com gelo, para abaixar a temperatura do corpo rapidamente. Assim, ele fica fresco e recebe um cuidado completamente diferente. Chegando ao solo, a classificação é feita para saber em que nível a carne está.
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V: Qual a maior classificação que ele pode alcançar?
AS: O máximo é o atum nível 1 AAA. O famoso Triple A. Um atum apto para ser exportado ao mercado de Tóquio. Hoje, já conseguimos comprar esse atum e trabalhar no mercado nacional. Tem um preço até três vezes mais caro que o atum de pesca local — que é um peixe de boa qualidade, mas os barcos responsáveis por sua pesca não são equipados para esse tipo de processo mais sofisticado.
V: Quais são as espécies mais comuns no Brasil e onde encontrá-las?
AS: O bluefin vem todo de fora. Ele nada no Atlântico, mas não gosta muito das nossas águas. Eles gostam mais de águas geladas, então se aproximam dos polos. No Brasil, utilizamos muito o atum kihada, que é mais claro e delicado. Não tem tanto sangue e gordura. Alguns chamam de atum feminino, pela delicadeza. Outro atum muito comum é o mebachi, também conhecido como big eye nos Estados Unidos e bandolim aqui no Brasil. É o mais utilizado nos restaurantes japoneses, com um vermelho goiabada bem forte. Os principais locais aqui no Nordeste que possuem atum são Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará. Já no Sudeste, temos muitos peixes no Espírito Santo e no Rio de Janeiro.
Por Beatriz Calais