Por que os meles nativos são um tesouro para a gastronomia brasileira

Com uma imensa diversidade de abelhas nativas, o Brasil possui meles com sabores complexos que chamam atenção mundo afora

Foto: Divulgação Mbee

Participar de uma degustação de meles nativos é um divisor de águas para o paladar e o cérebro. Para quem está habituado com o clássico mel que se encontra nos supermercados ou na beira das estradas, é uma grande surpresa sensorial descobrir meles com cores, texturas, sabores e aromas tão diferentes. O da abelha mandaçaia é claro e mais líquido, enquanto o da duckeola é escuro e espesso. Quanto ao sabor? Escolha seus preferidos: mais doces, ácidos ou amargos. Até mesmo o pólen pode ser provado, gerando mais um choque para a mente.  

 

Pólen vendido pela Mbee

 

Durante a experiência, conhecida como Academia do Mel, realizada cerca de uma vez por mês pela marca Mbee, a sala estava cheia de pessoas com carreiras e vidas muito distintas. Professora, psicóloga, engenheiro, fazendeiros, chefs – e a jornalista por trás deste texto, claro. Todos ali por motivos diferentes, mas com reações similares, conforme a degustação avançava.  

 

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Durante a aula, conduzida por Eugênio Basile, cofundador da Mbee, ao lado de sua esposa, Márcia Basile, todos os participantes, em algum momento, tiveram um mesmo questionamento: como eu nunca havia ouvido falar sobre essa imensa diversidade de meles brasileiros antes? – até o termo “meles”, na realidade, era pouco utilizado até então. Popularmente, o mel sempre foi tratado no singular, embora seja um dos insumos mais plurais do Brasil – o que ainda é a realidade atual, mas nem sempre foi assim.  

 

Eugênio e Márcia Basile em campo

 

Antes do período colonial, as abelhas nativas, responsáveis por esses meles valiosos, já eram sagradas para os povos indígenas. Os guaranis, por exemplo, utilizavam suas ceras para espantar maus espíritos e realizar rituais. Já o mel e o própolis eram usados para curar diversas doenças – conhecimento ancestral que acabou se perdendo, embora hoje alguns grupos já se movimentem para a recuperação desse hábito entre povos originários.  

 

A história por trás desse “sumiço” das abelhas nativas começa durante o período colonial, quando os comerciantes passaram a importar abelhas-europeias, que não produzem muito mel, para o Brasil, com o objetivo de fabricar velas com suas ceras. Já em 1951, estudiosos trouxeram para o solo nacional as abelhas-africanas – grandes produtoras de mel, mas também agressivas. Em um descuido, algumas dessas abelhas-africanas escaparam e procriaram com as europeias, gerando as abelhas africanizadas. Muito mais produtivas e resistentes, elas se espalharam pelo continente americano, tornando-se as grandes responsáveis pela maior parte do mel consumido no Brasil atualmente.  

 

Sabe aquela abelha clássica? Desenhada de maneira instantânea pelo cérebro quando pensamos no assunto? Essa é a abelha africanizada. Por sorte, elas não bateram de frente com as nativas – muito menores e sem ferrão. Mesmo assim, as nativas acabaram sendo postas de escanteio, o que piorou ainda mais com o avanço do desmatamento. Dependentes da preservação da mata, muitas entraram em processo de extinção. 

 

Abelha euglossini, conhecida como “abelha das orquídeas”

 

“Trouxeram a cultura de fora e esqueceram o que a gente tinha. No mundo, há cerca de 20 mil espécies de abelhas. Aproximadamente 400 não possuem ferrão. Entre essas, 300 são brasileiras. Como nós não conhecemos os meles dessas abelhas?”, questiona Basile. Para ele, a Academia do Mel é apenas um dos pilares para a valorização desses insumos nacionais. O segredo mesmo, em sua visão, está no empoderamento dos pequenos produtores. Isso fica ainda mais claro quando se conhece a história da abelha emerina.  


Da extinção às mesas da alta gastronomia  

 

O mel da abelha emerina tem cor de ouro, e seu sabor é bem mais ácido do que se imagina quando se pensa em um mel. A boca chega a salivar ligeiramente, o que é bem especial. Por mais que seu insumo seja rico em complexidade, a emerina passou um bom tempo sem ser valorizada e chegou a entrar na lista de espécies ameaçadas de extinção. Foi apenas em meados de 2017, após um produtor de Santa Catarina enviar um lote de mel para a Mbee, que o casal Basile conheceu o produto e decidiu fazer algo para impulsioná-lo no mercado.  

 

“Eu experimentei e fiquei enlouquecido”, conta Eugênio, que rapidamente apresentou o mel para o chef Ivan Ralston, à frente do Tuju (restaurante reaberto recentemente em São Paulo). Juntos, eles iniciaram um projeto de incentivo a pequenos produtores de Santa Catarina. Para alavancar a produção de forma sustentável, a Mbee paga, pelo quilo de mel de emerina, o quádruplo do valor do mel de jataí, uma abelha nativa mais comum. O preço também é 14 vezes maior do que o mel tradicional de apis.  

 

 

Isso tudo levando em consideração que a espécie realmente não produz em quantidades massivas como a abelha africanizada. Anualmente, são cerca de 300 gramas de mel por colmeia – e, ao todo, após a iniciativa de Basile e Ralston na região, há quatro produtores com cerca de 400 colmeias em atividade em Santa Catarina.  

 

Para atrair as abelhas e conseguir fazer essa extração, é preciso realizar um manejo sustentável com muita paciência e dedicação. Elas só aparecem se a vegetação estiver preservada, o que acaba gerando ações de conservação e defesa da natureza local. Além disso, a presença dessas abelhas é um ótimo sinal para a manutenção de fauna e flora nativas, visto que são polinizadoras e importantíssimas para o surgimento de novas plantas. Automaticamente, uma cadeia de sustentabilidade se forma.  

 

“E tudo começa com o empoderamento do produtor”, explica Basile. “Comprar barato e vender caro na alta gastronomia é uma vergonha. Posso ser odiado por ter aumentado o preço do mel no mercado, mas é assim que se faz esse trabalho. Você não vai construir nada se não pagar quem cuida da terra.”  

 

Hoje, restaurantes como Tuju, Evvai e Quincho já utilizaram o mel de emerina em seus pratos. “Nosso foco é gastronomia”, diz o cofundador da Mbee. “Se colocarmos esses meles nas prateleiras dos supermercados, o preço vai assustar os clientes. Um simples rótulo não é capaz de explicar toda a complexidade do produto, então deixamos esse papel de disseminação do conhecimento para a gastronomia. Os chefs sabem o que fazer.”  

 

Pão de mel de abelhas nativas do Evvai

 

O trabalho na cozinha  

 

Embora o Tuju tenha reaberto recentemente em São Paulo, Ivan Ralston afirma que, em todo o menu, pelo menos um prato carrega algum mel puramente brasileiro. “Eu os vejo como um grande tesouro brasileiro. Cada país tem suas iguarias mais marcantes, como a trufa da Itália, por exemplo, e acho que os meles deveriam ser a imagem da gastronomia brasileira”, ressalta o chef.  

 

Ralston observa diariamente a movimentação de comensais em seu restaurante e consegue perceber o aumento de interesse das pessoas para conhecer os insumos por trás dos pratos. “Cabe a nós valorizarmos esses produtos nacionais para que eles estejam em lugar de destaque. As pessoas precisam conhecer para entender o valor de tudo isso.”  

 

Para ele, basta uma degustação atenciosa para reconhecer a riqueza do produto. “Fiz um evento em Singapura em 2023 e levei vários produtos nacionais. O que mais deixou os chefs enlouquecidos foram os meles e o pólen. Eles ficaram doidos para conseguir comprar”, complementa Ralston.  

 

A sobremesa do Tuju com mel de emerina

 

Chef confeiteiro, Rafael Aoki tem uma ideia parecida sobre o assunto – parte disso por conta da própria experiência com o universo do mel, visto que ele conheceu o produto durante a faculdade, quando seu professor apresentou o projeto da Mbee. “Isso abriu a minha mente. Conheci sabores e texturas que nunca tinha imaginado”, recorda. Agora, à frente da confeitaria do restaurante Quincho, Aoki teve a oportunidade de explorar esses meles em suas receitas e apresentá-los à equipe.  

 

Apiário Nativo, prato criado pelo chef confeiteiro Rafael Aoki

 

“Fizemos uma espécie de spin-off da Academia do Mel no Quincho para que os funcionários entendessem mais esse ecossistema e pudessem explicar para os clientes. Quando as pessoas provam os meles, elas percebem que é diferente, mas não entendem o porquê. Por isso é tão importante explicar”, diz o chef. “Hoje, onde eu posso colocar mel, eu coloco. Às vezes ele não é o protagonista, mas rende uma nota especial para o prato.” 

 

Por Beatriz Calais | Matéria publicada na edição 132 da Versatille

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