Como a Victorinox se tornou um símbolo nacional para a Suíça

Em visita exclusiva às fábricas da empresa, ficou claro quanto a marca reflete a essência e a cultura de seu país

Foto: Divulgação

Há várias maneiras de fazer uma imersão cultural ao conhecer um país. Quando se trata de Suíça, algumas “mais clichês” vêm à mente: visitar uma fábrica de chocolates, escalar uma montanha ou simplesmente fazer um passeio pelos lagos cristalinos do local. Claro que há outras opções – mas acredito que eu tenha feito a mais inusitada ou, até mesmo, a mais específica.  

 

Pisei pela primeira vez no país europeu à convite da Victorinox, empresa centenária conhecida mundialmente pelos seus canivetes, mas que também produz facas, talheres, relógios, malas e acessórios para viagens. Em dois dias de roteiro, a ideia era visitar as fábricas da marca e saber um pouco mais sobre o processo produtivo, além de conversar com o CEO Carl Elsener IV, para entender mais sobre o funcionamento de uma empresa familiar consolidada há tantas décadas.  

 

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Para quem imaginava que não teria uma imersão cultural no país, foi justamente dentro das fábricas que percebi quanto a Victorinox reflete a essência da Suíça – o que faz muito sentido, visto que o logo da marca reforça a sua bandeira. Na fábrica de Delémont, responsável pela produção de relógios, me surpreendi com o silêncio e a atenção aos detalhes. Sem músicas nem conversas altas, os profissionais trabalhavam compenetrados, com foco total na montagem dos relógios.  

 

Já em Ibach, sede da marca, onde os canivetes são produzidos, há um pouco mais de barulho por conta dos maquinários, mas ainda assim tudo é extremamente organizado. Mesmo com funcionários por todos os cantos, não há bagunça – além, é claro, da pontualidade, que realmente é seguida à risca. Com cerca de 2.200 funcionários, 90 mil unidades de canivetes e facas são produzidas diariamente, destinadas à venda direta em 120 países. É admirável que um negócio com tamanha grandeza seja tocado com tranquilidade e calmaria.  

 

Uma das etapas da produção na fábrica de Ibach

 

Antes de ir embora, em um breve tour por Zurique, pude atestar que essa característica não é inerente à Victorinox. O que eu vi nas fábricas reflete a realidade do país. Na cidade que é considerada o centro bancário e financeiro, não há o caos de Nova York e São Paulo, seus equivalentes internacionais. É possível notar que as pessoas nas ruas estão se locomovendo para o trabalho, mas sem correria. Mais uma vez: o silêncio e a tranquilidade são uma dádiva. Foi aí que entendi por que a empresa, fundada em 1884, parece imune à passagem do tempo: ela é um símbolo nacional e sabe acompanhar as características e as mudanças de seu entorno.  

 

Legado perpetuado  

 

Em 1884, em meio a uma forte crise econômica que obrigava moradores do interior a abandonar suas cidades em busca de melhores condições de vida em outras regiões ou países, Karl Elsener I decidiu abrir uma oficina de cutelaria e canivetes em Ibach-Schwyz. O plano era controlar o êxodo por meio da criação de empregos. Uma estratégia incentivada pela sua mãe, Victoria, que acreditava ser possível ajudar a comunidade com oportunidades. Mais do que sonhadores, mãe e filho estavam certos. A oficina ajudou a região e, consequentemente, foi ganhando prestígio.  

 

Oficina de cutelaria e canivetes fundada por Elsener I

 

No ano de 1891, Karl Elsener I forneceu o primeiro suprimento importante de canivetes ao Exército suíço. Anos depois, em 1897, o produto foi patenteado e se tornou mundialmente conhecido como o autêntico canivete do Exército suíço (em inglês, o famoso Swiss Army). Foi apenas em 1909, no entanto, que Elsener escolheu o nome Victoria, em homenagem à sua mãe, para batizar a marca. Também aproveitou o momento para registrar o emblema Cross&Shield (que sobrepõe a bandeira da Suíça a um escudo) como marca comercial.  

 

A partir de então, a empresa familiar nunca deixou de acompanhar o avanço da tecnologia e as mudanças sociais. Em 1921, a invenção do aço inoxidável (inox) representou um desenvolvimento altamente significativo para o setor de cutelaria. A combinação das duas palavras, “Victoria” e “inox”, definiu finalmente o nome da marca, que, sob o comando de Carl Elsener II – segunda geração –, foi introduzida à automação e recebeu sua primeira fábrica de usinagem totalmente elétrica. Um marco para o mundo.  

 

É possível fazer uma linha do tempo gigantesca com a história da Victorinox, mas peço permissão para pegar um atalho até 1989, quando a marca decidiu expandir o seu portfólio e investir em novos produtos. Na época, os canivetes já eram mais do que consolidados. Já tinham até sido incluídos na coleção permanente de design do MoMA, em Nova York. Com tanto sucesso, por que se preocupar com outros mercados?  

 

 

“A ideia surgiu quando nosso principal produto, o canivete do Exército suíço, passou a ser copiado por fabricantes asiáticos. Era o fim da década de 1980, e eu e meu pai entendemos que nosso futuro dependia de fortalecer nossa marca”, explica Carl Elsener IV, CEO e parte da quarta geração no comando da empresa. “Juntos, começamos a estudar em quais categorias de produtos seria possível colocar a confiança depositada na marca Victorinox. Entendemos que o segmento de relógios se ajustava ao nosso DNA suíço.”  

 

Mais do que isso, eles perceberam que a tradicional expertise no manuseio de aço daria à empresa facilidade para criar pulseiras de alta resistência. De certa forma, não era um mercado que se distanciava do escopo trabalhado até então. Hoje, esse setor representa cerca de 10% da receita da companhia. A italiana Ariana Frésard, atual head da categoria de relógios, é a responsável por comandar os 160 funcionários da fábrica de Delémont. No local, eles desenvolvem modelos avançados, como a linha Drive Pro, certificada para mergulhos em profundidades de até 300 metros.  

 

Todos os relógios que são liberados para a venda passam por diversos testes em uma espécie de “sala de tortura” – para mim, a parte mais divertida do tour na fábrica. É nesse espaço que os produtos são submetidos a provas de calor, frio, impacto e resistência. Um processo essencial para que o padrão de qualidade criado pela empresa se mantenha em todos os seus segmentos.

 

Após os relógios, a Victorinox também investiu no mercado de malas e acessórios, além de ter adquirido a fabricante suíça Wenger S.A. em 2005. “Compramos a nossa concorrente, fundada em 1893, porque ela estava à beira da falência. Foi uma oportunidade de negócio e de manter viva uma marca do nosso país”, contou Elsener. Atualmente, os produtos com a bandeira Wenger representam uma categoria mais acessível dentro da Victorinox. Com a aquisição, a empresa passou a oferecer múltiplos produtos – mas é inegável: o canivete continua sendo o seu grande símbolo atemporal.  

 

“Nunca saia do planeta Terra sem um canivete suíço” 

 

Retirada da autobiografia An Astronaut Guide to Life on Earth, do astronauta canadense Chris Hadfield, a citação acima já foi utilizada em algumas publicidades da marca. As aspas reforçam a utilidade do acessório nos mais diversos tipos de situações. No entanto, com o avanço da sociedade, a empresa teve que começar a provar sua relevância também no mundo atual – o que às vezes pode ser mais complexo do que o espaço sideral.  

 

Em toda a sua história, a Victorinox já vendeu mais de 550 milhões de canivetes. Em 2024, o produto responde por 36% do faturamento global da empresa. Isso acontece porque os modelos foram sendo atualizados de acordo com as necessidades atuais. Alguns canivetes possuem mais de 73 funções, incluindo pen drive com 30 gigabytes de memória. “Nós ouvimos muito nossos clientes e fazemos o possível para incorporar novas soluções. Uma delas foi introduzir pen drives, com entrada USB e USB-C, que hoje equipam alguns modelos. É uma maneira de colocar o canivete na era digital”, ressalta o CEO.  

 

Com funcionalidade e tradição, pode-se dizer que o canivete também está presente no imaginário popular. Durante a conversa com Elsener, ele ressaltou quanto recebe relatos de consumidores que valorizam o item como parte de suas histórias. Alguns são passados de geração em geração, enquanto outros são um desejo de consumo de quem visita a Suíça. Acredito que esse seja um dos motivos de a minha imersão pelas fábricas ter sido tão especial.  

 

A oficina de personalização
de canivetes

 

Não é possível fazer o tour de forma turística, mas uma das oficinas que conhecemos está disponível para visitantes. Em Brunnen, às margens do Lago Lucerna e com vista para as montanhas cobertas de neve, uma loja da Victorinox oferece uma experiência de montagem de canivetes personalizada. Seguindo o método tradicional, é possível escolher funcionalidades, modelo, tamanho, material e cor do acabamento. Os preços partem de 49 francos suíços. 

 

À frente da empresa familiar, mas pronto para ensinar o caminho do sucesso para a próxima geração, Elsener deixa claro: “O segredo sempre foi ter o pé no chão e investir em avanços. Não se acomodar com o sucesso de braços cruzados. Sou muito orgulhoso de nossa família ter criado, em uma pequena vila da Suíça, um produto que se tornou um ícone global”, disse ele, finalizando o nosso bate-papo na fábrica de Ibach.  

 

Por Beatriz Calais | Matéria publicada na edição 135 da Versatille

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