Como a pesca de rio movimenta a gastronomia mundial
No Brasil e no mundo, a pesca de rio movimenta a gastronomia, os costumes e a economia
Camarão, creme de abóbora, Catupiry, leite de coco e massa folhada. O prato mais cultuado do Birosca, em plena Belo Horizonte, é uma torta com o crustáceo mais pop do mar. Trata-se de uma lembrança afetiva de Bruna Martins que, como muito mineiro, também ama um bolinho ou uma empada de bacalhau, mesmo que o protagonista das receitas esteja longe de nadar por ali.
Como tantos conterrâneos, a chef nem se dava conta da surrealidade da coisa: “Fui perceber de tanto o meu professor da academia falar da pescaria do fim de semana. Toda vez que eu ia malhar ele mostrava: ‘olha esse tucunaré que eu pesquei, olha esse dourado’. E não é que a gente está cheio de rio aqui do lado e come fruto do mar ou tilápia? Como pode?”
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Mea culpa feita, em vez de duvidar das histórias de pescador, Bruna decidiu lançar a própria isca: “Ô, Maurílio, você fica me mostrando esse tanto de peixe para fazer inveja, mas sei que você nunca vai me dar. Não tem pescador sério em Três Marias, não?”. E, assim, com a provocaçãozinha, a cozinheira não fisgou pouca coisa.
Os lambaris angariados foram diretamente empanados em fubá crioulo. Em parte, para serem servidos sobre coalhada de missô, com tomatinhos do sítio da moça. Em outra, para coroarem o mais novo carro-chefe do restaurante: a empada ribeirinha, feita de pirão de cascudo (peixe “feioso” e notívago de água-doce), lambuzada sem dó com molho de limão e pimenta-de-cheiro.
Os pacus, por sua vez, tiveram de ser curados para se tornarem o tartar, bem-acompanhados por maionese de jabuticaba e crocante de banana verde. Já os tucunarés, além de curados, acabaram defumados e churrasqueados antes de partirem para a mesa, escoltados por tropeiro de dois feijões (o andu e o manteiguinha), farelo de broa, castanha-baru, couve e torresmo do próprio peixe. Tudo devidamente “mineirin”.
“Se tem pescador que depende do que o rio dá, por que não tem nada disso na peixaria, no mercado, na feira? Porque a gente perdeu o hábito. A gente precisa reaprender”, defende Bruna.
Do discurso, a defesa passa à prática: a jovem de 33 anos fundou um projeto, o Doce Pescaria, que combina pesquisa e filosofia slow food, que apoia comida boa, economia justa, biodiversidade e cultura alimentar. Afinal, é preciso estudar técnicas culinárias para potencializar ou neutralizar sabores, para obter texturas desejáveis, para desenvolver cortes.
Mais uma vez apitam as contradições: o Brasil pode até ter 7.491 quilômetros de litoral, mas ostenta igualmente bacias hidrográficas. Só a Amazônica percorre mais de 3,7 milhões de quilômetros quadrados no país. Nesse aguaceiro sem fim tem pirarucu, filhote, tambaqui, matrinxã… então por que a hegemonia de robalos, camarões e, mais do que nunca, instagramáveis polvos nos cardápios?
Que o diga Saulo Jennings, da Casa do Saulo, em Santarém, no Pará. Abastecido pelo Rio Tapajós, o empresário/mestre-cuca é incisivo: “Chique é a comida raiz, o alimento que conta a história da região onde ele se origina”.
Vai daí que linguiça de pirarucu com jambu, feijoqueca com medalhões do mesmo pescado e caldeirada de filhote, camarão de água-doce, tucupi e macaxeira, também servidos na filial carioca, no Museu do Amanhã, comprovam sua tese: “Chef não cria nada, quem cria é quem cultiva, pesca, maneja. Eu sou um transformador do alimento. As verdadeiras estrelas são aqueles por trás da enorme cadeia produtiva”.
Em outra Santarém, do lado de lá do Atlântico, Rodrigo Castelo mergulha a fundo nos cursos dos rios. Só no menu degustação “O que é doce nunca amargou” há snacks e mais seis pratos com pescados tradicionais do Ribatejo, província no coração de Portugal. Há achigã, siluro, pimpão, fataça, lagostim…
“Só não há peixe fresco”, avisa o chef do Ó Balcão. Em seu restaurante estrelado pelo Michelin é “um desafio colocar as pessoas a comerem esses peixes que muitas vezes têm sabor de lama”. O obstáculo é enfrentado pelas camarinhas (camarõezinhos) fritas que, como pipoca, embalam o drinque de boas-vindas, assim como pela barriga de barbo, que faz as vezes do bacalhau na punheta (salada típica com o peixe desfiado e temperadíssimo).
Há peixe-rei com gel de limão, pimpão com creme de açafrão, cogumelo com enguia defumada, ovas de truta, uma espécie de sashimi de lúcio, arroz caldoso de caranguejo de rio. E tem mais.
No premiado salão, as correntezas vivem em sintonia com a terra: “Trabalho técnicas como a salmoura, a cura, os fumados, picles e escabeches, sempre com desperdício zero, com o aproveitamento total dos produtos, com a utilização de espinhas, ossos, cascas ou outras sobras para caldos, molhos e temperos”.
A noção de cozinha consciente e sustentável ecoa forte no Velho Mundo: “No Rustique, oferecemos um menu único, o “Natureza instantânea”, de forma a transcrever o DNA da cozinha camponesa. Queremos resgatar os sabores naturais e valorizar os melhores produtos do nosso território. Por isso, trabalhamos exclusivamente com peixes de água-doce, como a carpa, o brochet (lúcio) de Bresse, a truta-ártica de Cévennes”.
À explicação, Maxime Laurenson, chef dessa criativa e estrelada cozinha lionesa, acrescenta: “Propomos também o siluro (peixe-gato) de pesca selvagem ao norte de Lyon. A carne desse predador assustador do Rhône é muito interessante para cozinhar: é ao mesmo tempo densa e muito delicada. Não desmancha e se presta à defumação. A maioria dos nossos clientes nem imagina que ela é apta para o consumo, e fico feliz em fazê-los descobrir”.
Outra promessa estrelada da cozinha de terroir, seu colega Adrien Descouls recorre aos lagos vulcânicos e aos rios com água de alta qualidade do Maciço de Sancy, no centro da França: “Gosto de ir ao Lago des Gerris para pescar predadores, mas acima de tudo de pescar truta-do-ártico na cratera de mais de 90 metros de profundidade do Lago Pavin”.
Hobby à parte, o chef do Origines gosta de brincar com o entrelaçamento de texturas e sabores: “Entre doçura e adstringência, as papilas gustativas são estimuladas a descobrir o peixe do rio em todo o seu esplendor”.
Curiosamente, Adrien recorre também à aquicultura de Stephane e Laetitia Heinis, onde trutas “de alta gama” são criadas em água fria e límpida, com cinco vezes mais espaço para elas nadarem do que em uma fazenda orgânica.
“Eles cuidam do bem-estar animal, dão alimentação especial, rica em proteínas e pobre em lipídios. Amenizam o abate com o método japonês ikejime, que reduz a dor e preserva a carne. Conhecê-los foi uma revelação, eles me fizeram aliar a paixão pela pesca à honra de trabalhar com os peixes pelos quais zelam por no mínimo dois anos e meio”, confessa.
Que fique registrado: as condições relatadas pelo chef fazem toda a diferença. Água quente ou baixo volume de água concentram poluição e permitem o desenvolvimento de fungos e bactérias – um dos motivos por que não se deve comer o bicho do “pesque e pague” nem o salmão de cativeiro.
por Fernanda Meneguetti | Matéria publicada na edição 130 da Versatille