Cerveja é gastronomia: especialistas falam sobre o potencial da clássica bebida

Com um mercado artesanal que já tomou todos os estados do Brasil, a cerveja mostra sua riqueza por meio da diversidade de estilos e sabores

(Foto: Divulgação Dádiva)

“A cerveja que não existe”, diz o slogan da Seringal Bier, cervejaria artesanal inaugurada em novembro de 2019 no Acre. “Moro aqui desde 2006 e sou muito grata pelo que a população acreana proporcionou à minha família. Como eles são bem-humorados sobre as piadas feitas sobre o estado, decidi homenagear a região com o slogan. Afinal, se o Acre não existe, nossa cerveja também não”, explica Elisane Grecchi, cofundadora da marca. 

 

Tudo não passa de uma brincadeira, mas vale lembrar: o Acre não só existe como também está completamente imerso no mercado cervejeiro. Com a inauguração da Seringal Bier, todos os estados do Brasil agora possuem pelo menos uma cervejaria artesanal registrada no Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento). “A outra cervejaria que temos aqui é industrial, então nosso surgimento foi muito importante para a região. É a oportunidade de oferecer cervejas frescas de diferentes estilos para os acreanos”, destaca Elisane. 

 

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Mais do que uma conquista para o estado, a Seringal Bier também representa o movimento positivo do setor cervejeiro nos últimos anos. Embora a pandemia de covid-19 tenha afetado negativamente o mercado por conta do fechamento de bares e restaurantes, o Anuário da Cerveja 2020, divulgado em 2021 pelo Mapa, mostra que 204 novas cervejarias foram abertas no primeiro ano da pandemia – um aumento de 14,4% em relação ao ano anterior. No período avaliado, o Brasil tinha 1.383 cervejarias registradas. 

 

India pale ale da Japas Cervejaria com casca de dekopon (um fruto híbrido do cruzamento de tangerina Ponkan com targor Kiyomi) e café (Divulgação)

 

Os números atualizados referentes a 2021 ainda serão divulgados pelo Mapa até o fim do ano, mas, segundo a empresa de pesquisa de mercado Euromonitor International, o setor passa por um aumento de consumo capaz de afetar positivamente os empreendimentos na área. O volume de cerveja comercializado no Brasil (o que envolve toda a indústria) cresceu 7,6% em 2021, superando o avanço de 5,3% registrado em 2020 e atingindo o recorde de 14,3 bilhões de litros. A expectativa é que a quantidade total de vendas da bebida cresça novamente em 2022, alcançando 15,4 bilhões de litros e marcando o quarto ano consecutivo de alta. 

 

Alguns outros dados complementam esse indício de boa maré para o mercado cervejeiro. Como a inauguração da Seringal Bier mostrou, embora a concentração de cervejarias esteja na Região Sul-Sudeste, com 85,6%, a arte de produzir cervejas está se popularizando em outras localidades. O próprio Mapa destacou a atuação das Regiões Nordeste e Centro-Oeste em 2020, com crescimento de 41,4% e 22,8%, respectivamente, em relação ao ano anterior. 

 

Como se não bastassem os números, no início de 2022 a CBO (Classificação Brasileira de Ocupações) reconheceu o trabalho de sommelier de cervejas como profissão, marcando mais um avanço importante para o setor. “Os sommeliers de vinho existem há centenas de anos. Com a cerveja estamos falando de algo muito recente, o que impacta na forma como as pessoas enxergam a bebida no âmbito gastronômico”, destaca Victor Marinho, mestre cervejeiro e cofundador da Cervejaria Dádiva. 

 

“Sempre tivemos grandes indústrias de cerveja aqui no Brasil, mas elas oferecem, em sua maioria, um único estilo. Se você experimenta e não gosta, vai dizer que não gosta da bebida. Com as cervejas artesanais, temos uma diversidade de estilos e sabores. É aí que conquistamos novos consumidores”, completa Estácio Rodrigues, sócio-fundador do Instituto da Cerveja, uma das primeiras instituições a focar na capacitação de sommeliers de cerveja. “Nosso mercado é novo. Começou há cerca de 30 anos, mas apenas recentemente aprendemos que a cerveja é versátil e um ótimo pilar gastronômico.” 

 

PRAZER, CERVEJA GOURMET! 

 

Foi a partir do termo “gourmet” que algumas cervejarias começaram a cativar o público apaixonado por gastronomia. Não há nenhuma legislação definindo o que é uma cerveja gourmet, então acredita-se que o marketing é o grande protagonista dessa história. “As pequenas cervejarias exploram os estilos e fazem bebidas mais ricas em sabor e experiência. Elas são simplesmente cervejarias artesanais, mas acredito que o termo gourmet começou a ser usado para chamar a atenção e mostrar que cerveja é, sim, gastronomia, capaz de harmonizar com muitas comidas”, opina Rodrigues. 

 

Alguns estilos da Seringal Bier e uma tábua de harmonizações (Divulgação)

 

Além disso, no início do mercado, algumas pessoas achavam que “artesanal” significava “caseiro”. Sendo assim, a gourmetização acabava dando mais seriedade ao produto. Hoje, com mais de mil pequenas cervejarias no Brasil, vale reforçar a diferença: embora não sejam grandes indústrias, os empreendimentos artesanais são certificados pelo Mapa e produzem para venda. As únicas diferenças são o volume e a escala dessa produção. 

 

Em resumo, não é preciso brigar: todos aqueles com criatividade e dedicação podem se tornar gourmet – aliás, esse é o grande diferencial dos pequenos negócios. “Como produzimos em menor escala, podemos arriscar um pouco mais. O tombo é menor”, diz Marinho, com humor. Para ele, uma das maiores riquezas da bebida é esse mundo de possibilidades para criar. “A cerveja tem uma amplitude de harmonizações ainda maior do que o vinho. São infinitas possibilidades porque é uma bebida com muitos estilos e com adições de outros sabores, como frutas vermelhas, laranja e café.”

 

Além disso, embora haja uma série de regras de combinação, a harmonização é sempre muito pessoal. “Basicamente, há duas formas de se harmonizar uma cerveja: por semelhança e por contraste. Uma cerveja intensa torrada pode ser apreciada junto a um bolo de chocolate por conta da semelhança. Ao mesmo tempo, é possível degustar o mesmo bolo com uma cerveja ácida de leve teor alcoólico. Essa é a harmonização por contraste”, explica o mestre cervejeiro.

 

“Há muitos caminhos possíveis, e tudo depende do paladar de cada um. Muitas pessoas não gostam de cerveja por acharem a bebida amarga, mas a Witbier, que é feita de laranja, quase não tem amargor. Comer uma ricota enquanto bebe esse estilo de cerveja é algo leve e surpreendente”, completa. “É com essa diversidade que estamos conquistando muitos adeptos do mundo do vinho.” 

 

Para Rodrigues, que trabalha há 12 anos com a formação de sommeliers e mestres cervejeiros, fica claro o aumento do interesse pelo mercado. Em 2010, quando o empresário decidiu tirar o Instituto da Cerveja do papel, não existia nenhum curso de sommelier no continente americano. Hoje, mais de 14 mil alunos já passaram pela escola.  “Ninguém sabia sobre a história, a matéria-prima ou a produção da bebida. Quem queria estudar tinha de ir para Berlim. Agora, muitos dos que já estudaram os vinhos buscam entender mais sobre a cerveja. Nem sempre para empreender. Às vezes é só por curiosidade mesmo.”

 

Aqueles que costumam empreender, no entanto, mostram grande capacidade competitiva com os produtos internacionais. “É caro fazer a inscrição para concursos, principalmente com a desvalorização da nossa moeda. Mesmo assim, são muitos brasileiros talentosos carregando medalhas”, ressalta Rodrigues. Formados ou não pelo Instituto da Cerveja, é sempre gratificante ver o Brasil conquistando espaço no mundo. 

 

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A cervejaria Wäls, por exemplo, uma das primeiras artesanais do Brasil, traz em seu currículo importantes conquistas, como o troféu de melhor cervejaria do mundo de 2020 pela International Beer Challenge, além de mais de 385 medalhas ao redor do mundo. Já a Japas Cervejaria, fundada em 2014 com o objetivo de explorar ingredientes asiáticos, conquista o mercado com a criatividade de seus rótulos – que vão desde wasabi até pétalas de jasmim. A aceitação é tão grande que a marca já está presente em cerca de 400 restaurantes entre Brasil e Estados Unidos. 

 

A Versatille conversou com representantes de algumas cervejarias artesanais de sucesso ao redor do país. Imersos no setor, eles indicam suas harmonizações gastronômicas preferidas quando se trata de cerveja. Para quem busca desbravar esse mundo, a hora é agora. 

 

 

Por Beatriz CalaisMatéria publicada na edição 127 da Versatille