De fuga do Vietnã a sucesso gastronômico: conheça a história do casal que comanda o restaurante Miss Saigon
Com duas unidades em São Paulo, a casa de culinária vietnamita carrega muita cultura e uma história surpreendente
Não é segredo para ninguém quanto a cidade de São Paulo é recheada de diferentes culturas. Seja por meio de arte, seja de costumes ou culinária, é possível conhecer um pouco do mundo quando se tem interesse em sair da rota convencional. O restaurante Miss Saigon, por exemplo, oferece às regiões de Pinheiros e Vila Nova Conceição – onde a segunda unidade do empreendimento familiar acaba de ser inaugurada – uma viagem ao Vietnã por meio da gastronomia típica e da história por trás da origem da casa.
Conhecida pela saudabilidade e pelo frescor de seus ingredientes, a cozinha vietnamita não tem nada a ver com o que muitas vezes é divulgado de forma sensacionalista. “Não servimos insetos nem animais exóticos”, diz Nguyen Vo, que recebeu a Versatille no restaurante para apresentar os pratos e contar sua história. Com seu marido, Vo Van Phuoc, ela comanda o Miss Saigon e busca desmistificar os sabores de seu país.
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A realidade gastronômica apresentada por ela, na verdade, é de muita riqueza. “O Vietnã é um lugar que sofreu ocupação chinesa e francesa, então nossa culinária tem traços asiáticos e ocidentais”, explica. No caso do Miss Saigon, o foco é a gastronomia do sul do Vietnã, que possui alguns traços e influências da cozinha francesa por conta dos 100 anos de colonização. Mesmo assim, o cardápio vietnamita tem as próprias características, com muitos ingredientes à base de arroz, caldos e molhos com ervas.
Entre os pratos mais clássicos, temos o Pho Bo, com talharim de arroz, broto de feijão, cebola, ervas e carne bovina com caldo – que leva mais de dez horas de cocção e quatro horas de preparo para ficar pronto –, e a entrada Chả Giò, um rolinho primavera assado feito de massa de trigo e recheado de frango ou pernil suíno. Com um toque de agridoce por conta dos molhos e leveza pelo frescor dos ingredientes, é tudo muito saboroso e reconfortante – o que explica o reconhecimento que a casa tem recebido nos últimos anos. Em 2019, o Miss Saigon entrou para o hall da fama TripAdvisor, prêmio concedido apenas a restaurantes que conquistaram cinco vezes seguidas o Selo de Excelência da plataforma.
Esse é apenas um dos sinais de que o objetivo de Nguyen Vo e Vo Van Phuoc foi alcançado. Em 2013, quando eles decidiram abrir o Miss Saigon com o apoio dos filhos, o grande desejo era apresentar a culinária vietnamita para o povo brasileiro. “Na época não tinha restaurantes com esse cardápio em São Paulo. Nossa comida era feita apenas em comunidades vietnamitas. Não havia restaurantes com essa proposta”, relembra Nguyen. “Faltava o nosso toque na gastronomia de São Paulo. Quando inauguramos o restaurante, surpreendemos muita gente.”
ALÉM DA COZINHA
Não é apenas o sabor da comida vietnamita que encanta os clientes do restaurante. Além da cozinha, Nguyen Vo e Vo Van Phuoc carregam uma história tão surpreendente quanto as notas gastronômicas que servem nas mesas do Miss Saigon. Em uma das paredes do estabelecimento de Pinheiros, há um quadro com uma foto antiga de um barco em alto-mar – e, como se pode imaginar, a imagem não está ali sem motivo. Na realidade, ela é um registro histórico do trajeto que o casal fez para conseguir chegar ao Brasil, em 1979, após uma fuga arriscada do território vietnamita.
Naquele barco, Nguyen Vo, Vo Van Phuoc e mais 24 pessoas esperavam por resgate à deriva no mar da China. Até o momento, o casal não se conhecia. Nguyen Vo, que contou mais detalhes da história, fugiu sozinha e deixou toda a família para trás. Para ela, a fuga era a única maneira de encontrar liberdade. Na época, o país asiático vivia um período conturbado depois da guerra entre o Vietnã do Sul e o Vietnã do Norte – no início de 1979, por exemplo, estourou o conflito sino-vietnamita, que foi breve, mas envolveu a recém-unificada República Socialista do Vietnã contra a República Popular da China.
“Tínhamos duas opções: ficar nessa situação de guerra ou tentar fugir. Nos dois cenários poderíamos morrer, mas só uma opção resultaria em liberdade. Estava nas mãos de Deus”, recorda Nguyen Vo. Aos 21 anos, ela planejou a fuga com seus irmãos, mas acabou se desencontrando deles e precisou seguir sozinha. “Não podíamos ir até o ponto de partida do barco juntos para que a polícia não desconfiasse, então fui um dia antes. Quando meus irmãos foram me encontrar, eles já tinham fechado a pista e não estavam deixando ninguém passar. Eles ficaram para trás e eu fui.”
Uma vez no barco, a chef de cozinha conta que não havia destino. O plano era ficar à deriva e esperar resgate de algum país. “Passamos quatro noites no barco. No primeiro dia, o motor ainda estava funcionando. No segundo, ele parou e ficamos realmente sem rumo. A maré nos levava para onde quisesse. Em um dos dias, passou um peixe bem grande embaixo do nosso barco. Eu fiquei com tanto medo que até fechei os olhos. Não sei se era uma baleia”, conta.
Com sentimentos dúbios – a esperança de encontrar resgate e o medo de ficar à deriva para sempre –, o desespero ia aumentando a cada hora que passava. “Avistamos um navio e fizemos sinal para resgate, mas eles nos viram e foram embora. Lembro que todo mundo chorou na hora. Era quase uma sentença de que íamos morrer.” Sem muita noção do tempo, Nguyen Vo conta que logo outro navio apareceu e também decidiu ir embora sem fazer o resgate. A diferença desse segundo caso, no entanto, é que em poucos minutos ele se arrependeu e voltou para socorrer os refugiados.
“Depois ficamos sabendo que era um navio da Petrobras. Assim que nos avistou, o capitão ligou para a Embaixada brasileira, porém não recebeu autorização para nos resgatar. Ele estava indo embora, mas, quando viu a situação do nosso barco, que tinha até uma mãe com um bebê de 9 meses, ele voltou e nos abrigou mesmo sem autorização”, revela. Após o resgate, o grupo ainda precisou esperar por três meses em Singapura até que fossem realocados definitivamente em outros países. França, Itália e Brasil aceitaram receber os refugiados, mas a chef conta que escolheu o Brasil por acreditar que seu destino estava traçado com o país depois de ter sido resgatada por um navio brasileiro.
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No Vietnã, Nguyen Vo trabalhava em um salão de beleza e Vo Van Phuoc era estudante. Quando chegaram a São Paulo, com a ajuda de um empresário de origem alemã e sua esposa, eles casaram e conseguiram outros empregos. Vo Van Phuoc foi para a linha de montagem de pneus para caminhões na Volkswagen e Nguyen Vo começou a trabalhar com costura industrial para lojas no Bom Retiro. “Era um trabalho de fundo de quintal, para sobreviver, mas depois passamos a fazer encomendas maiores, até que realmente conseguimos nos estabelecer e formar nossa família”, destaca a chef.
Com os três filhos criados, foi apenas em 2013 que a ideia de seguir para a cena gastronômica surgiu. Com apoio familiar, o casal pôde resgatar sua cultura e passá-la para a frente por meio da culinária. Hoje, Nguyen Vo já conseguiu reencontrar sua família e visitar o Vietnã em férias, mas ela diz não se arrepender de sua decisão na juventude. “Tínhamos muita coragem. Fugimos com esperança de liberdade, e é isso que temos agora”, finaliza.
Por Beatriz Calais