Entre o Rio Tejo e o Algarve, uma grata surpresa

A Herdade do Esporão, no coração da região, foca na sustentabilidade e na consciência ambiental, em toda a sua extensão de negócios: vinhos, azeites e restaurante estrelado

A propriedade da Herdade do Esporão existe há mais de 750 anos (Divulgação)

O trajeto entre Lisboa e a pequena cidade de Reguengos de Monsaraz é agradável, com passagem por cartões-postais – caso da Ponte 25 de Abril, suspensa sob o Rio Tejo, que liga Lisboa a Almada –, e vista para paisagens repletas de Sobreiros, árvore que dá origem à cortiça. Em uma manhã de sábado ensolarada e gélida de fevereiro, ideal para escapar da cidade, o destino era certo: a Herdade do Esporão, que até pode fabricar rótulos familiares que já são velhos conhecidos dos brasileiros – entre vinhos e azeites –, mas que traz, em sua essência, muito mais do que já foi falado por aqui. 

 

A propriedade da Herdade do Esporão existe há mais de 750 anos e teve seu limite geográfico estabelecido em 1267, o qual se mantém praticamente inalterado até os dias atuais. Entre os muitos donos, notórios como o morgado dom Álvaro Mendes de Vasconcelos, o responsável pela construção da Torre do Esporão – atual símbolo da marca, imponente e visível desde a chegada, que abre alas para o os lagares de azeite, as plantações e o restaurante. Desde 1973, após a aquisição da propriedade por José Roquette, atual proprietário, e Joaquim Bandeira, uma nova história começou a ser escrita e hoje revela-se em sua melhor forma, por meio de um restaurante recém-classificado como uma-estrela Michelin, e também com uma estrela Verde, que designa os estabelecimentos que fundem perfeitamente a gastronomia e a sustentabilidade; por rótulos que surgiram a partir de 1985 e seguem em constante evolução; e pelos azeites, produzidos nos lagares do Esporão, que fundem perfeitamente tradição e tecnologia.  

 

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O dia se inicia na presença de Ana Gaspar, gestora de qualidade de azeites e fornecedores de azeitona, que explica minuciosamente o processo de produção do azeite de oliva, desde a fase da colheita, seja no Olival dos Arrifes, dentro da propriedade, seja nas terras dos fornecedores de azeitonas parceiros, todos situados na região do Alentejo. Todas as variedades de azeites, exclusivamente virgens ou extravirgens, são produzidas no complexo dos lagares – o mais novo foi inaugurado em 2018 –, dividido em dois edifícios: um para a produção e o outro para o armazenamento, feito todo de cortiça. Como em uma vitrine, graças à construção aberta, é possível ver o processo de produção (paralisado, por se tratar de um sábado), que começa na recepção das azeitonas, as quais são escolhidas e separadas conforme a qualidade e origem; segue para a pesagem e lavagem, e na sequência para a extração centrífuga e moedura – é de extrema importância a restrição do contato das pastas de azeitona com o ar, por conta da oxidação do azeite. Para preservar os aromas característicos do fruto, é necessário o batimento a baixa temperatura (no máximo 27 ºC), e daí extrai-se rapidamente o azeite, que segue para o armazenamento em cubas de 22 mil e 55 mil litros, antes de criar os lotes finais, ou seja, os diferentes rótulos, entre eles os Selecção, Olival dos Arrifes (orgânico e superpremiado) e o extravirgem orgânico, que acaba de chegar ao mercado brasileiro. A sustentabilidade, assim como o reaproveitamento dos recursos, são vistos na prática: o bagaço do caroço da azeitona alimenta uma caldeira, responsável por gerar energia calorífica e água quente, e as folhas são utilizadas na compostagem, transformadas em fertilizantes naturais para o olival e para a vinha, o que nos leva ao próximo encontro e, consequentemente, a uma história de quase 50 anos.  

 

Vista aérea de uma das hortas que abastecem o restaurante (Divulgação)

 

A Herdade do Esporão é mais fácil de ser percorrida a bordo de um automóvel: quem nos leva para o tour guiado é António Roquette, à frente do enoturismo. Faz sentido começar pela torre, de onde se avistam – e se perdem de vista – os limites da propriedade de 700 hectares, assim como as vinhas, que contabilizam cerca de 40 castas, plantadas em sete solos diferentes. Desde 2008, a Esporão vem em um trabalho contínuo de mudança de modos de produção, a fim de se tornar mais consciente, o que exigiu o mapeamento geológico e também repensar as práticas agrícolas. Os rótulos Colheita (branco e tinto) são orgânicos desde sua primeira safra, a de 2016. Toda a premissa se estende à propriedade, assim como ao restaurante, abastecido principalmente pelas hortas e pelos pomares próprios que visitamos: um “laboratório” de legumes, hortaliças e frutas do chef Carlos Teixeira e sua equipe.  

 

A sala de barris da adega (Divulgação)

 

A visita segue, subterrânea, pelas caves e salas de barricas, ambientes que deixam ainda mais nítida a potência do grupo, que, além da propriedade alentejana, também possui a Quinta dos Murças, no Douro; e a Quinta do Ameal, na região dos vinhos verdes. De lá, seguimos para a degustação guiada, dos rótulos orgânicos tinto e branco Colheita, safra de 2020, e do Esporão Reserva Branco 2020, que é uma agradável surpresa: produzido a partir do blend das castas antão vaz, arinto e roupeiro, o que resulta em uma intensidade harmoniosa em boca, do rótulo mais antigo da propriedade e que segue em constante evolução. 

 

Consciência aplicada à cozinha  

 

“No momento, a forma como cozinho é: foco nos meus produtores, eles dizem o que há no momento e crio a partir disso. A minha visão sempre é do que temos disponível, da temporada e sazonalidade, e depois é claro que entra a minha criatividade e experiências, assim como meus gostos e paladar, para as combinações. Realizamos muitos testes, mas o primeiro passo sempre parte dos produtos à disposição. No começo da primavera, por exemplo, temos couves, favas, ervilhas, aspargos e algumas raízes. Estou em contato diário com os produtores e também monitorando as nossas hortas, para pensar o que vamos criar”, explica Carlos Teixeira, o chef à frente do restaurante do Esporão, que foi contemplado no último mês de dezembro com uma estrela Michelin e uma estrela Verde, que reconhece estabelecimentos que se comprometem com a sustentabilidade e que implementam iniciativas com o objetivo de preservar o meio ambiente. 

Peixe Lucioperca, de rio, servido na ocasião do menu (Giulianna Iodice)

 

O menu Carta Branca, em cinco ou sete etapas, é definido conforme a disponibilidade dos produtos, mas há alguns clássicos, como o peixe lucioperca: “É um peixe de rio, predador, que come os peixes pequenos, e existe em muita quantidade. Não há época certa para a pesca, é como uma praga”, explica Teixeira. Na ocasião, o almoço harmonizado iniciou-se com os pães e manteigas, feitas do zero no próprio Esporão, e seguiu com snacks – entre eles o brócolis, que supreende pela textura e sabor. Na sequência, couve-coração – ou repolho, para os brasileiros–, e então dois pratos com peixes, entre eles o lucioperca, citado anteriormente, e então a sobremesa. Além da gastronomia, na arquitetura e decoração do restaurante, realizadas pelo escritório Skrei, tem uma esplanada integrada com parte das vinhas. Privilegiado em luz natural, é o ambiente ideal para um almoço longo e sem pressa, e, se a temperatura permitir, é possível sentar-se do lado de fora. O serviço é atencioso, com perfeita coordenação entre o tempo dos pratos e a harmonização. À ocasião, o potente vinho de talha tinto, que tem processo de vinificação em ânforas de barro, como era antigamente, acompanhou um dos tempos.  

 

A equipe do chef Carlos Teixeira e do sous-chef Duarte Lourenço é majoritariamente jovem, assim como eles – um retrato de uma nova gastronomia portuguesa: “Temos muitas pessoas interessadas em trabalhar aqui, é algo que estamos vendo cada dia mais, nos últimos dois anos. Temos o espaço privilegiado e mostramos o processo do início ao fim. A possibilidade de ensinarmos aos cozinheiros toda a metodologia é um luxo e uma responsabilidade, ensinar as próximas gerações. Estamos cada vez mais presentes na formação, em parcerias com as escolas. Eu acredito que, se os cozinheiros que nós ensinamos, seja daqui a cinco ou dez anos, estiverem melhores do que eu em sustentabilidade e cozinha, posso aprender com eles, porque é uma constante evolução. E se eu ensinar tudo o que aprendi aos outros será como uma bola de neve. Temos de acreditar nisso”.  

 

O chef Carlos Teixeira (Carlos de Albuquerque)

 

Atuante em um movimento que (ainda bem) tem cada vez mais adeptos, Teixeira ainda esbarra em dificuldades, como o uso de embalagens de plástico por parte dos fornecedores – na cozinha do Esporão, o material foi eliminado do dia a dia. “Eu tenho o sonho de não criar lixo nenhum a partir da cozinha. Ver os pontos que se ligam e fazer todo o retorno, de compostagem, ou seja, sem criar qualquer tipo de resíduo, seria um sonho. É um desafio muito grande, mas gostaria de atingi-lo. Já existem estabelecimentos que fazem isso, mas gostaria de adaptar a nossa realidade”, conclui. 

 

por giulianna iodice | Matéria publicada na edição 125 da Versatille

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