Afonso Cruz fala sobre seu livro “Vamos Comprar um Poeta”

O autor português cria uma realidade distópica para refletir sobre o valor da cultura e dos sentimentos na obra

Afonso Cruz
Afonso Cruz (Divulgação)

Em uma sociedade materialista, cujo único objetivo é o lucro, uma menina sonha em ter um poeta. Nesse universo, onde todas as lógicas são matemáticas, até mesmo para contabilizar os afetos, artistas são adquiridos em lojas e criados como se fossem animais de estimação. Sem espaço para o subjetivo, a poesia vira uma futilidade, afinal ela não gera frutos mensuráveis. É justamente aí que os personagens se enganam.

 

LEIA MAIS:

 

 

O enredo de Vamos Comprar um Poeta, de Afonso Cruz, até pode soar distópico, mas é mais verossímil do que parece. “De certa forma, não há diferenças substanciais, mas acidentais: no livro, algumas práticas sociais são exageradas, mas sua essência não é diferente da sociedade que conhecemos”, afirma o autor. “A ideia prevalecente de lucro é comum ao livro e ao mundo a nossa volta.”

 

Tal doutrina antiutilitária, que prioriza o dinheiro à felicidade (indo ao encontro do conceito de utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill), está presente nos mínimos detalhes da fábula. Nela, objetos banais são patrocinados por marcas, pessoas recebem códigos numéricos como nomes e o consumo é sempre estimulado. Quanto vale um poema? É a pergunta que Cruz faz – e responde – no livro.

 

Livro Vamos comprar um poeta

(Divulgação)

 

Em poucas páginas, o leitor é levado com leveza pela mudança na vida da menina e de sua família com a chegada do poeta. O novo olhar trazido pelo trovador transforma o cotidiano de formas inesperadas. Para resumir a obra, o escritor cita um verso de autoria do  sacerdote espanhol São João da Cruz: “Entremos más adentro en la espesura” (“Entremos mais a fundo na espessura”, em tradução livre).

 

Leia trechos da entrevista com Afonso Cruz, autor de Vamos Comprar um Poeta.

 

Versatille: Quando a escrita e a literatura entraram em sua vida?

Afonso Cruz: Em certa medida, desde que sou leitor, ainda criança. Foi a leitura que me fez escritor. Porém, só comecei a escrever e a publicar em 2008, já com 37 anos, porque fui convidado para trabalhar como redator de publicidade, e, pela primeira vez, tive um trabalho em que a matéria-prima eram as palavras. Desde então, publiquei mais de 30 livros, mas minha atividade principal continua a ser a leitura.

 

V: Quando começou a escrever Vamos Comprar um Poeta?

AC: Em 2016. Portugal passava por uma crise financeira, mais uma, e o Ministério da Cultura havia sido extinto, dando a entender que tal ministério não serviria para nada, sendo apenas um setor da sociedade que não dá lucro, o que é um perfeito disparate. Todos os estudos feitos indicam o oposto: [a cultura] é uma das atividades mais rentáveis e que mais geram emprego, não por objetivo, mas por consequência.

 

V: Teve alguma inspiração para dar vida à obra?

AC: Sim, um caso inglês, do período colonial, em que aristocratas “compravam” sábios hindus para morar numa cabana em seus jardins, com o propósito de entreter as visitas que por ali passeavam.

 

V: Que retrato é desenhado pelo livro?

AC: A ideia de que gestos cotidianos (ações, sentimentos, atitudes etc.) não são ferramentas para um resultado posterior, mas têm valor em si mesmos. A amizade e o amor, por exemplo, sendo duas das coisas mais importantes da vida, não são lucrativos. Os amigos não recebem salário por sua amizade. Ora, a arte também não é uma ferramenta, ela tem valor em si mesma.

 

V: Quais são as semelhanças e diferenças entre a obra e nossa realidade?

AC: Se em Vamos Comprar um Poeta tudo parece exagerado, há em nosso cotidiano casos bem mais graves do que aqueles descritos na obra. O trabalho infantil, o trabalho escravo, a corrupção, enfim, há inúmeras formas de mercantilizar o ser humano que são muito mais violentas do que as descritas no livro.

 

LEIA MAIS:

 

V: Qual é o papel da poesia para a vida?

AC: A poesia mostra-nos um mundo muito maior do que aquele que os sentidos experimentam. Há uma profundidade em todas as coisas que se torna acessível através de um sentido poético. 

 

Por Mattheus Goto

Para quem pensa em ir para o Japão em busca de uma nova vida, também poderá procurar empregos aqui.