Os irmãos Campana e a sustentabilidade no design de móveis

Os irmãos Campana completam 37 anos de atuação consagrando-se como referência em design sustentável

Irmãos Campana
Prestigiados internacionalmente por seu trabalho, Humberto (em pé) e Fernando (sentado na Poltrona Sade) já receberam a Ordem do Mérito Cultural por sua contribuição à cultura brasileira (Bob Wolfenson)

É genético: se há algo em comum entre os irmãos Campana é a criatividade. O DNA de Humberto e Fernando ostenta genialidade a cada detalhe de seu ofício. As mentes por trás do prestigiado estúdio Campana são responsáveis pela criação de peças disruptivas de design, que vão muito além da funcionalidade de um item de mobiliário.

 

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Em uma celebração às riquezas naturais e culturais brasileiras, a marca registrada da dupla é elevar materiais do cotidiano ao status de nobreza. São criados, dessa forma, móveis intrigantes, como uma cadeira feita de bonecas de pano (Cadeira Paraíba), uma poltrona de sarrafos de madeira encontrados nas ruas (Poltrona Favela) e um banco duplo de arame coberto de vime tramado (Banco Dois Irmãos).

 

O método de criação se tornou referência não apenas pelo reúso de materiais, mas pela construção de uma identidade brasileira no mobiliário, por meio de cores, texturas e “caos”, como ambos descrevem.

 

Com uma longa trajetória profissional, Humberto, nascido em 1953, e Fernando, em 1961, lideraram o triunfo das soluções simples, de maneira artística e poética. Formados, respectivamente, em direito pela Universidade de São Paulo e arquitetura pelo Unicentro Belas Artes de São Paulo, os irmãos criaram o estúdio em 1984 na capital paulista.

 

Estante Modular Detonado dos Irmãos Campana

A Estante Modular Detonado é construída em estrutura de madeira freijó e tecida artesanalmente com náilon transparente e patchwork de palha reaproveitada das cadeiras Thonet (Fernando Laszlo)

 

Além de produzir móveis, o escritório atua nas áreas de arquitetura, paisagismo, cenografia e moda. Suas criações integram coleções permanentes de instituições renomadas ao redor do mundo, como os parisienses Centre Pompidou e Musée des Arts Décoratifs, o MoMA, em Nova York, e o Museu de Arte Moderna de São Paulo.

 

Em 2009, os dois criaram um instituto que também carrega o sobrenome da família, a fim de promover o design como ferramenta de transformação, por meio de programas sociais e educacionais.

 

Em comemoração aos mais de 35 anos de atuação, com o lançamento recente do livro Irmãos Campana: 35 Revoluções, os dois conversaram com a Versatille sobre seu processo de criação e suas inspirações, que são intrínsecas à sustentabilidade. Leia a seguir trechos da entrevista.

 

Pirarucu Armchair Pink

A Pirarucu Armchair Pink apresenta uma textura única do peixe de água doce amazônico, obtido por meio da pesca sustentável de comunidades nativas (Divulgação)

 

Versatille: Quando começaram a desenhar móveis, quais eram suas inspirações?

Humberto Campana: Fernando e eu queríamos seguir um caminho diferente percorrido pelos modernistas brasileiros e por outros designers naquele momento. Tínhamos uma inquietação constante de encontrar uma linguagem genuinamente brasileira, olhando para nossas verdadeiras raízes, como nos mostrou tão bem Lina Bo Bardi.

 

V: Essa inspiração continua até hoje?

Fernando Campana: Ela continua sempre ativa, o tempo inteiro. Nossa curiosidade permanece sempre aguçada pela vida ao nosso redor, as inquietações e relações humanas e a conexão com a natureza. Quando menino, eu sempre quis ser um astronauta, olhar pra fora. Essa fascinação com a grandiosidade da vida faz parte do nosso DNA, e, como irmãos, temos a sorte de poder compartilhar esses encontros e, juntos, criar nosso universo. Até hoje me sinto como se estivesse brincando no quintal da nossa casa (risos).

 

V: O que vocês esperam alcançar com as criações?

HC: Não esperamos alcançar nada específico. Nosso processo de criação é muito orgânico, não é algo planejado nem premeditado. Ele é regido pelo caos criativo. Mas, se tiver de pontuar algo, acho que buscamos imbuir (mesclar) nossas peças com alma. Cada uma delas tem uma história implícita sendo contada silenciosamente através dos materiais e da maneira como ela foi feita. A simples presença dela em qualquer espaço já comunica muita coisa a partir da interação com aqueles que têm sensibilidade para “ouvir” essa história visual.

 

Poltrona Favela, dos irmãos Campana

A Poltrona Favela é construída a partir da reutilização de sarrafos de madeira descartados nas ruas de São Paulo (Cortesia Edra)

 

V: Quando a sustentabilidade começou a fazer parte dos projetos?

FC: Desde o início, antes mesmo de o termo se tornar onipresente. Nós ressignificamos materiais no início da nossa carreira porque era o que tínhamos ao nosso alcance. Cadeiras feitas de mangueira, bambu, plástico-bolha, ralo de pia. Nossa avó costumava guardar latinhas de mantimentos e fazer vasos de flor, canecas. Crescemos aprendendo a reaproveitar tudo. Eu mesmo fazia meus brinquedos cortando fatias de mandacaru, que cercavam o nosso quintal, e espetava com palitinhos. Eram as minhas naves espaciais. Aprendemos que todo material tem mais de uma função ou possibilidade de ser.

 

V: Como o viés sustentável e artesanal pode ser visto atualmente nos desenhos?

HC: Não diria que é um viés, pois não é algo que condiciona nosso trabalho. Ele apenas compõe o DNA Campana. Como falamos antes, cada peça é feita de camadas dentro do nosso processo criativo, passando por várias mãos. Desde a seleção do material, sua procedência, seu manuseio, até a escolha das pessoas que nos auxiliam na construção de cada etapa. Buscamos resgatar tradições manuais que estão em vias de desaparecimento, a maioria é de artesãos independentes que precisam e merecem destaque. Ou então as ongs que integram os projetos do Instituto Campana e ampliaram seus horizontes, e que fazem um trabalho de transformação social por meio do design. Essa cadeia circular é algo que norteia nossos projetos. É uma fórmula que funciona muito bem, pois todos têm um resultado positivo do ponto de vista financeiro e pessoal, e, de preferência, com responsabilidade ambiental.

 

V: Que projeto foi marcante para vocês nesse aspecto? Por quê?

FC: Difícil escolher um. Destacaria nossa coleção Detonado, que utiliza restos de palhinhas de cadeira (Thonet), recolhidas aqui na região de Santa Cecília (São Paulo), onde fica o estúdio. Essa coleção emprega materiais que seriam jogados fora, usa uma técnica artesanal única desenvolvida por nós e aplicada por pequenos fornecedores independentes, que, por sua vez, têm um retorno financeiro que os auxilia a reinvestir e continuar tocando seu negócio, empregando outras pessoas. É um modelo simples de cadeia circular que nos incumbe, assim como todos os designers que têm espaço e reconhecimento no mercado, de apoiar e disseminar o trabalho dessas pessoas.

 

Banco Dois Irmãos, dos irmãos Campana

O Banco Dois Irmãos, da coleção Transwood, é produzido a partir de técnicas manuais brasileiras e uma estrutura de arame coberta de vime tramado, unindo duas cadeiras de madeira (Eduardo Delfim)

 

V: Qual é a importância de falar sobre sustentabilidade no design?

HC: Nos dias de hoje, quando todo o planeta está vivendo na pele os efeitos do desequilíbrio ambiental, acho que é importante falar de sustentabilidade em todos os aspectos da vida cotidiana. Nosso poder como consumidor, na hora de comprar um alimento, uma peça de roupa ou um móvel, é a força motriz para alavancar mudanças que o ecossistema está exigindo há muito tempo. Quanto realmente precisamos consumir coisas novas? Como e quando elas são descartadas? Podemos dar uma nova vida a elas? É isso que buscamos fazer. Damos sobrevida aos materiais em vez de jogá-los fora.

 

V: Algum projeto sustentável em que estejam trabalhando?

FC: Sustentabilidade é mais do que uma temática para nós, é um dos pilares que caracterizam o nosso trabalho e para quem hoje as pessoas dão mais atenção, e com razão. O estúdio, porém, não vê isso como algo que condiciona ou limita nossa liberdade criativa, ao contrário. Acredito que o mais importante é educar e conscientizar as pessoas a respeitarem o meio ambiente e a valorizarem nossas riquezas naturais. Acho que a pandemia foi um grande alerta para isso. Temos planos de inaugurar um parque no ano que vem, através do Instituto Campana, que será uma espécie de centro cultural a céu aberto, visando justamente a combinar arte e educação ambiental. 

 

Por Mattheus Goto | Matéria publicada na edição 121 da Versatille

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