Saiba como funcionam os bastidores de museus brasileiros
Quando as portas se fecham, o trabalho de instituições como a Pinacoteca, MON e Museu do Amanhã está apenas começando
Quando o Sol se põe, as luzes se apagam e o último visitante sai pela porta, o trabalho começa. O silêncio, predominante nas salas durante todo o dia, é a trilha sonora dessa atuação oculta. Em um encontro a sós com a arte, um grupo seleto de pessoas tem a oportunidade de apreciar quadros icônicos sem mais ninguém por perto. Há quem diga que é à noite que as famosas telas Monalisa, O Grito e Moça com Brinco de Pérola, mas não somente, ganham vida de verdade.
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Ao admirar Caipira Picando Fumo, você não está observando apenas o trabalho de Almeida Júnior. Perante seus olhos, há também o ofício de outro profissional, não conhecido quanto o autor original: um restaurador-conservador da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Com ênfase na produção brasileira do século 19 até a contemporaneidade, o museu de arte mais antigo da cidade, fundado em 1905, tem um acervo com cerca de 11 mil peças. Armazenadas em nove reservas técnicas no antigo casarão de tijolinhos localizado no Jardim da Luz, as obras são de autoria de artistas como Almeida Júnior, Anita Malfatti, Lygia Clark, Tarsila do Amaral, Pedro Alexandrino e Candido Portinari. Um instituto com tantos clássicos exige um esmero técnico à altura.
Enquanto o público adentra o edifício subindo as magníficas escadas na entrada da Praça da Luz, o staff precisa dar a volta por fora para chegar à portaria de serviços. O térreo é majoritariamente dedicado aos funcionários, reservando os outros andares para as salas expositoras. O único indício que visitantes costumam ter do trabalho nos bastidores é voltando os olhares para o átrio do prédio e observando a movimentação lá embaixo. Funcionários – uniformizados ou não, mas sempre com um crachá ao pescoço – passam depressa e rumo a seus postos, cruzando diagonalmente o pátio situado no centro da edificação.
Lá está o Laboratório de Conservação e Restauro, responsável por higienizar, restaurar, retocar e conservar todas as obras da Pinacoteca, contando com equipamentos e materiais específicos para lidar com peças de papel, pinturas e esculturas. As forças-tarefas de revisão às salas expositivas ocorrem principalmente quando a Pinacoteca está fechada, com esforços maiores às terças-feiras (dia em que não há visitação).
As reservas técnicas são exatamente o que se espera: portas gigantescas de metal pesado, como se fossem cofres de filmes, que guardam todas as produções artísticas não expostas dentro de ambientes controlados em termos de temperatura e umidade do ar. O armazenamento é feito em telas de arame corrediças, às quais os quadros são fixados. Para as esculturas, a criatividade vem a calhar a fim de garantir um bom estado. Há um trabalho manual sob medida para criar apoios de papelão, madeira, foam board e outros materiais isolantes. As criações ainda são catalogadas e, a cada dois anos, têm sua localização conferida no acervo por motivos de segurança.
O trabalho oculto também acontece fora do museu. Em 15 de outubro de 2020, a Pinacoteca inaugurou OSGEMEOS: Segredos, primeira exposição panorâmica da dupla de artistas formada pelos irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo. Depois do sucesso de público, a mostra foi encerrada, em agosto deste ano, com um roteiro a seguir: as mais de mil peças foram desmontadas e transportadas até o Aeroporto Internacional de Guarulhos, de onde partiram para o Aeroporto de Curitiba e, finalmente, chegaram ao Museu Oscar Niemeyer (MON). Cada passo desse trajeto foi acompanhado por um courier (“correio”, na tradução literal), funcionário da solicitante do empréstimo que fica encarregado de ser uma espécie de segurança 24 horas e fazer vistorias antes de sair do ponto de origem e após chegar ao destino.
Depois de todo esse trâmite, fica a cargo da equipe de montagem atender às demandas logísticas do grupo de curadoria. Para cada exposição há um curador (interno ou convidado) responsável por definir como será toda a experiência dos visitantes, desde a posição das peças no ambiente até a cor da parede de cada sala. A concepção de uma mostra pode acontecer de diversas formas. “Nós temos no MON atualmente três modalidades de produção de exposições”, conta Juliana Vosnika, diretora-presidente da instituição. “O plano anual traz projetos produzidos pelo próprio museu, com propostas analisadas pelos conselhos cultural e superior. Temos também a ocupação do espaço, exposições sugeridas por outros produtores que demonstram interesse em expor no MON. Por fim, as parcerias institucionais são produzidas em conjunto com outras instituições culturais.”
Pela complexidade de todo o processo, criar uma exposição do zero significa planejar com antecedência. A Pinacoteca, por exemplo, já divulgou sua programação completa para 2022 com temas relacionados à “identidade brasileira”. Isso porque o curador precisa elaborar uma lista com as obras solicitadas para a exposição e o museu entra em contato com organizações (nacionais e internacionais), colecionadores particulares ou até mesmo o próprio artista para obtê-las, o que normalmente acontece com pelo menos um ano de antecedência.
No caso do MON, dedicado a artes visuais, arquitetura e design, a maior busca é por talentos brasileiros, asiáticos, africanos e latino-americanos. “Procuramos ampliar a visão eurocêntrica historicamente comum aos principais museus do mundo”, afirma Juliana. “O MON tem bem claro que seu propósito é sensibilizar as pessoas para a arte e pela arte. Acredito que atingimos esse propósito sendo cada vez mais atuantes e democráticos.”
Já o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, destaca-se pela ciência, com uma exposição permanente de mais de 5 mil metros quadrados, abordando cinco grandes áreas do conhecimento (Cosmos, Terra, Antropoceno, Amanhãs e Nós). O trabalho é de atualização constante, totalizando cerca de 800 novidades desde sua inauguração, em 2015. “Todas as atividades têm o apoio de consultores e materiais científicos”, explica Leonardo Menezes, diretor de conhecimento e criação do instituto. “A ideia é transmitir os saberes e ativar as emoções dos visitantes, para que possam levar os aprendizados após a interatividade conosco. Queremos unir racional e emocional. Falar sobre os desafios dos próximos 50 anos, mas do ponto de vista humanista, para que o visitante se emocione de alguma forma e mude de atitude.”
“Na construção do futuro, todos os grupos precisam estar envolvidos”, acrescenta Menezes. Isso significa trazer o conteúdo de forma acessível, seja com tradução em libras, seja para pessoas com baixa cognição e autismo. Afinal, os programas educativos também são um forte das instituições culturais. “É um desafio ser uma porta de entrada para o público e fazer gerar curiosidade, principalmente para estudantes da rede pública”, diz. Assim, são criados programas de incentivo, como o Vizinhos do Amanhã, que oferece entrada gratuita para moradores da região portuária do Rio.
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Para manter tudo funcionando, é preciso ter verba. Os pilares orçamentários costumam ser fomento do governo, doações e, especialmente, programas de patronos, nos quais pessoas engajadas e apaixonadas pela arte doam anualmente quantias em dinheiro para a aquisição de novas obras em troca de benefícios. Essas e outras instituições trabalham exaustivamente, não apenas para o próprio funcionamento, mas em nome da cultura nacional. Cada um dos departamentos, desde conservação, restauro, produção, curadoria, acervo, comunicação e educação até limpeza, segurança, administrativo, financeiro e jurídico, atua antes, durante e depois dos horários de visitação, para deixar tudo nos trinques. Chega ao fim mais um dia de expediente, mas logo já se inicia outro: é hora de abrir as portas ao público.
Por Mattheus Goto | Matéria publicada na edição 123 da Versatille