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Pandemia fortalece comunidade local e sustentabilidade na gastronomia

Falsos tortéis de pupunha e abóbora com melão, amêndoas, parmesão e manteiga de sálvia, do restaurante Maní

Falsos tortéis de pupunha e abóbora com melão, amêndoas, parmesão e manteiga de sálvia, do restaurante Maní (Divulgação)

E como fica a alta gastronomia, a dos restaurantes estrelados, com o novo tempo aberto pela catástrofe mundial do coronavírus? Como ficará o perfil dessas grandes casas e como a crítica e as premiações vão se portar neste momento que está por vir?

 

Todos esperam que no prazo mais breve possível as coisas possam voltar perto do que era normal. Ainda que com mudanças. Alguns resquícios da tragédia podem ser até úteis: o reforço das medidas de higiene, por exemplo, é necessário mesmo sem pandemias (ainda mais se considerarmos que a maneira como a humanidade vem se portando com a natureza aumenta as possibilidades de novos surtos).

 

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A chef Helena Rizzo traz um enfoque inovador ao Maní, aliando uma gastronomia refinada e de prestígio internacional com um ambiente informal, além de pratos com preços mais contidos (Divulgação)

 

Por outro lado, certos valores que vinham se delineando mesmo antes da pandemia tendem a se reforçar, como já temos sentido mesmo no Brasil: restaurantes cada vez mais preo­cupados não somente com as delícias do cardápio – que devem, evidentemente, ser sempre a meta de quem trabalha com a gastronomia –, mas também com outros fatores. Ganham relevância também a valorização de ingredientes ligados à cultura local e aspectos sociais e ambientais, como a sustentabilidade em todo o ciclo que cerca o alimento (da terra ao prato) e em todas as relações humanas envolvidas, do produtor do ingrediente aos trabalhadores do restaurante, passando pela comunidade em que ele se insere.

 

São tendências que já vinham emergindo nos últimos tempos, mas que a pandemia de certa forma tende a acentuar, em vista da tragédia humana que se abateu também sobre o mundo dos restaurantes e da alimentação, criando ondas de assistência muitas vezes lideradas por chefs que impregnaram suas ações solidárias com seu talento de cozinheiros.

 

O restaurante Mocotó, que nasceu no bairro da Vila Medeiros, na zona norte de São Paulo (Divulgação)

 

De cozinha brasileira, o Mocotó é pioneiro destes novos tempos (Divulgação)

 

Restaurantes brasileiros que estão na mira das premiações internacionais são exemplos dessa vertente. Não tanto na última edição do guia Michelin Rio-São Paulo, que manteve o viés aristocrático que caracteriza a centenária publicação – basta ver que os quatro restaurantes com a cotação máxima atribuída por eles no Brasil (duas estrelas, em três possíveis) são todos de ambientes sofisticados e preços altos (além da boa comida): D.O.M. e Ryo, em São Paulo, e Oro e Oteque, no Rio de Janeiro.

 

Já restaurantes que estão sendo cada vez mais celebrados por sua informalidade, seu acesso mais democrático e suas relações com produtores e com a comunidade e que têm cozinha muitas vezes excepcional são esnobados pelo guia – às vezes relegados à categoria “bib gourmand”, ou seja, lugares recomendados por serem baratos. Fora o desconhecimento do cenário brasileiro, que o Michelin novamente demonstra neste ano, há também outro viés que é típico do guia: ao mesmo tempo que merece todo o reconhecimento por sua importância na gastronomia desde 1900, ele sempre foi bastante lerdo para reconhecer novas tendências e talentos.

 

O Mocotó mantém-se ligado à comunidade e tem preços compatíveis com o poder aquisitivo da região onde o pai do chef, Rodrigo Oliveira, abriu a casa (Divulgação)

 

Já outra referência internacional – a lista World’s 50 Best Restaurants, sediada em Londres (e da qual posso falar com mais propriedade por participar de sua organização) – desde 2002 vem servindo para medir o pulso das preferências da gastronomia mundo afora. O Brasil tem participado da lista desde 2005, e mais ainda depois que foi lançada também uma lista regional em 2013 – a Latin America’s 50 Best Restaurants.

 

Refletindo as tendências do gosto de gourmets pelo planeta, ambas premiam também restaurantes clássicos, aristocráticos e caros, mas desde o início abrem espaço para visões mais contemporâneas. O primeiro dos brasileiros a entrar na lista, em 2006, foi o D.O.M. Mas, ao longo do tempo, foram ganhando reconhecimento casas com outros perfis.

 

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A Casa do Porco Bar é o restaurante brasileiro mais bem colocado no ranking 50 Best (Divulgação)

 

O restaurante de Jefferson e Janaína Rueda escancarou a tendência de associar uma gastronomia refinada com ambiente descontraído e preços acessíveis (Divulgação)

 

A pioneira desses novos tempos foi o Mocotó, de cozinha brasileira (do sertão nordestino), feita de forma exemplar, e com a insistência de manter-se ligado à comunidade onde nasceu (o bairro da Vila Medeiros, na Zona Norte) e segurar os preços compatíveis com o poder aquisitivo da região onde o pai do chef, Rodrigo Oliveira, abriu a casa, em 1973. Outro restaurante com enfoque inovador foi o Maní, da chef Helena Rizzo, que entrou na lista mundial em 2013 e é outro dos pioneiros em aliar uma gastronomia altamente refinada, de prestígio internacional, com um ambiente informal, acolhedor, além de pratos à la carte com preços mais contidos. Mais tarde foi o casal de chefs Jefferson e Janaína Rueda, que lançou há cinco anos A Casa do Porco Bar – o restaurante brasileiro mais bem colocado no ranking 50 Best (número 39 na última lista) –, que escancarou essa tendência de associar uma gastronomia refinada com um ambiente descontraído e preços acessíveis.

 

Essas novas casas também vêm renovando os laços com produtores familiares, com o meio ambiente e com a comunidade. São exemplos inspiradores que podem influenciar até mesmo os grandes restaurantes mais tradicionais, cuja arte minuciosa e ancestral eu admiro e espero que não se perca, mas que podem e devem beber também nessas novas fontes da juventude.

 

Por Josimar Melo

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