Cozinha italiana alavanca a restauração paulistana na atual fase da pandemia

Nos últimos meses, surgiram em São Paulo mais de uma dezena de restaurantes e bares inspirados na gastronomia da Itália, símbolo de comfort food

Cacio e pepe
Cacio e pepe (Ricardo D'angelo)

Tem hora que parece que foi ontem, tem hora que parece que foi há uma eternidade. Concretamente, foi em fins de 2020, tempo em que os restaurantes paulistanos não sabiam quando nem se voltariam a abrir as portas, que a semente foi lançada. 

 

Como cozinheiro de carne e osso que é, Marcio Shihomatsu, do Shihoma Pasta Fresca, abalou-se e, sim, teve o típico ataque humano: “Logo agora que eu ia abrir o meu espaço?!”. Perturbações à parte, o pastaio treinado em Toronto adaptou os planos e começou a esculpir massas que, da cozinha de sua casa, logo ganharam amigos, amigos de amigos e hoje foodies de São Paulo todinha.

 

Como se combinações de farinha com água ou ovos fossem folhinhas de papel, Shihomatsu molda os mais delicados origamis: são tortelli que revelam o camarão no interior, cappellacci de ossobuco, balanzoni verde de espinafre, triangoli di maiale e outras massinhas que não estampam o menu de nenhum outro pastifício da cidade.

 

LEIA MAIS:

 

“Venho de uma família japonesa. As pessoas podem achar a culinária japonesa muito diferente da cozinha italiana, mas é bem parecida: é sobre simplicidade, poucos ingredientes sazonais e muita técnica.” Se essa foi a gênese do delivery convertido em restaurante na Vila Madalena, Shihomatsu garante que ela dependeu e depende de mais dois cozinheiros – Bia Freitas e o americano Joey Lim.

 

Mais do que o êxito de uma joalheria hipster de macarrão, o Shihoma reflete um momento peculiar: a supersafra de estabelecimentos de cozinha italiana na capital paulista. Por volta de quatro meses, São Paulo viu brotar mais de uma dezena de restaurantes e bares inspirados na gastronomia do guloso país europeu. Tem speakeasy, pizzaria, bar, trattoria, rooftop, casas com sotaque ora apaulistanado, ora afrancesado, cozinhas autorais e classiconas que, em uníssono, exalam tomate, Campari e manjericão. 

 

Tortelli de camarão do Shihoma

Tortelli de camarão do Shihoma (Divulgação)

 

Juntos também, os novos negócios apontam para uma carência gastroafetiva, propícia a ser saciada por comidas reconhecíveis, não raro servidas diretamente da panela, sabores que abraçam estômago e coração, sem distinção. As filas de espera do Il Capitale ou do Piccini, nos Jardins, comprovam a tese.

 

O salão do Il Capitale

O salão do Il Capitale (Ricardo D’angelo)

 

“A cozinha italiana é muito simples; a dificuldade é ter bons produtos e um lugar harmonioso para servir. Se você tiver isso, não tem erro. O clássico sempre vai prevalecer”, avalia o restaurateur apuliano Gianluca Perino (ex-Bottega Bernacca). Em dois meses de funcionamento, seu novíssimo Il Capitale levou quase 15 mil pessoas à Rua Oscar Freire e consumiu mais de 5 mil burratas e 5 mil garrafas de vinho tinto.

 

Ex-sócio de Perino, o catalão Gerard Barberan também está rindo à toa: acaba de abrir o Gran Bar Bernacca, colado à Bottega do Itaim, e prepara-se para mais uma unidade do restaurante (a terceira), no Shopping Iguatemi. Se, no corre, ele mal tem tido tempo de curtir o bebê etílico-gastronômico, azar o dele! Os comensais agora têm à disposição um bar classudo, como os do norte da Itália. Um lugar em que se compartilha uma berinjela todinha à parmigiana e sanduichinhos surreais, ou melhor, rolls de carne cruda e panini de ossobuco. Para acompanhá-los, coquetéis assinados pelo italianíssimo bartender Fabio La Pietra, que surpreende com Negroni de melancia e com o fresco Tricolore (Jerez, gim, Triple Sec, limão-siciliano e amarena).

 

Pratos do Gran Bar Bernacca

O menu do restaurante de cozinha italiana Gran Bar Bernacca (Divulgação)

 

Ainda mais intimista, o Il Covo, nos Jardins, segue essa toada. No auge da pandemia, os comparsas Carlos Bertolazzi, Juscelino e Dudu Pereira decidiram converter o escritório de seu Zena Caffè em um speakeasy. Não, eles não infringiram os lockdowns, mas usaram o período de incertezas para rabiscar um bar para 15 pessoas. “A gente se inspirou num spot de Portofino, que funciona por ordem de chegada, sem reserva, e se deu o direito de brincar um pouco”, conta Pereira.

 

O Sgroppino, do Il Covo

O Sgroppino, do Il Covo (Divulgação)

 

Por brincadeira entenda-se petiscos como o “bolovo di quaglie al tartufo” (com ovo de codorna e lascas de trufa negra) e drinques como o Cardinólio (um cardinale com toque de azeite).

 

Falando em brincadeira, ela fica especialmente séria quando chefões entram nessa deliciosa recreação. Assim, André Mifano aproveitou toda a energia acumulada desde o encerramento de seu Lilu, em outubro de 2020, para montar o Donna, ítalo-paulistano recém-inaugurado nos Jardins.

 

Ravioli de carne seca, requeijão de corte e molho de abóbora e mel

Ravioli de carne seca do Donna (Tati Frison)

 

Quiçá pelo ano sabático forçado, na nova casa ele se permite contar, do seu jeito, o que seus 25 anos de carreira significam. Não tem mais pudores de repetir o que já fez e deu certo, tampouco de debruçar-se sobre a Itália mais tradicional “aplicando processos, zelando pelos ingredientes e tratando-os com esmero”. 

 

Mifano revisita o joelho de porco, por exemplo. Se em seu extinto Vito ele dava vida a raviolli, agora ele aparece em um risotto com milhinho tostado, glace, saba (redução de uva com trufa) e pururuca. Ao mesmo tempo, ao “mifanar” sem medo, serve bruschetta de tripa com lula, pancetta e tomate tostado.  

 

Ousado por natureza, Luiz Filipe Souza, do Evvai, tomou o caminho oposto: para dissipar um pouco a ansiedade pandêmica, montou o Evv.ita, um delivery com pizzas e, vez por outra, um prato reconfortante criado em seu endereço estrelado pelo Michelin. Durou pouco. Frenético como só, não aguentou ter apenas uma portinha para entregas e arrematou um antigo restaurante árabe, transformando-o em uma forneria para 80 pessoas que, além de redondas levíssimas de fermentação natural, gratina casquinhas de siri e milanesas com precisão. 

 

Focaccia caponata do Evv.Ita

Focaccia caponata do Evv.Ita Focaccia caponata do Evv.Ita (Tati Frison)

 

Seu colega italiano da região da Campânia, Antonio Maiolica, enveredou por direção similar – a de afagar a clientela com pratos clássicos, curadoria habilidosa e olhar autoral. Trocando em miúdos, no menu do novíssimo Alto cabem os “bolinhos” de macarrão cacio e pepe, a trança de mozzarella desenvolvida exclusivamente pelo laticínio Búfala Almeida Prado para ele matar saudades de sua terra natal, um à la norma em forma de pizza e não de pasta, macarronadas esmeradas e sobremesas familiares, caso da torta dela nonna.

 

 

Focaccia caponata do Evv.Ita

A trança de mozzarella do novo Alto (Tati Frison)

 

Seu sócio, Fábio Moon, um dos instagrammers mais respeitados pela comunidade gastronômica do país, define o restaurante envidraçado no topo de sua bombadíssima Jurassic Park Burger como um lugar de “comida fácil, com bom custo-benefício, que valoriza o produto”. E emenda: “O Antonio é talvez a pessoa que faz a comida italiana com mais referência e estudo no Brasil. Deixei ele livre para isso e me dediquei aos coquetéis”.

 

Quem também se dedicará a coquetéis é outro rooftop. No mesmo bairro e a céu aberto, o Pippo Limone foi buscar em Capri as referências e está prestes a inaugurar um gastrobar descomplicado, com direito a muito antepasto e Aperol Spritz. 

 

A essa lista extensa, vale agregar dois pesos pesados: Erick Jacquin e Rodolfo de Santis. O primeiro fecha 2021 com o Lutetia, um franco-italiano sofisticado nos Jardins. O segundo abre em janeiro o Vito, um mozza bar no Itaim, inicia as obras do Valentino, seu ristorantino autoral, e, como se fosse pouco, se prepara para lançar a versão carioca do Nino e, possivelmente, do Da Marino. 

 

Restaurante de cozinha italiana

Ambiente do restaurante de cozinha italiana Vito, de Rodolfo De Santis (Divulgação)

 

Quell’Abbraccio!

A Cidade Maravilhosa também enlaça sabores da cozinha italiana

 

Em tempo, ainda que o Rio de Janeiro jamais tenha sido considerada a maior cidade italiana fora da Itália, a fome por abraços de spaghetti ressoa por lá também. O interesse do Grupo Famiglia Nino não é o único indício. Tendo em vista a demanda, o exitoso Grado, no Jardim Botânico, passou a servir apenas menus em três etapas; o refinado Nido, do Leblon, abrirá no comecinho de 2022 um bar no imóvel vizinho; e o chef Elia Schramm, depois de conduzir Pici Trattoria, Posì Mozza & Mare e o extinto Luce, está enlouquecendo com o alto movimento de sua primeira empreitada, o Babbo Osteria, em Ipanema.

 

O provocativo uova pepenara do Babbo

O provocativo uova pepenara do Babbo (Rodrigo Azevedo)

 

LEIA MAIS:

 

“No Babbo, resgato memórias da minha infância, na parte italiana da Suíça, mas também viajo pela Itália sem amarras, usando as técnicas francesas da minha formação e a criatividade. Eu me permito servir carne cruda com ovo mollet e cannoli de camarão e me divertir”, confessa Schramm. 

 

Por Fernanda Meneguetti | Matéria publicada na edição 123 da Versatille

Para quem pensa em ir para o Japão em busca de uma nova vida, também poderá procurar empregos aqui.