Conheça o laboratório de ideias de Jefferson Rueda
O chef de A Casa do Porco, abre as portas do antigo lar de sua família, onde todas as suas receitas são criadas
Em uma tigela funda, cubra uma peça de barriga de porco com uma salmoura de água, sal, açúcar e temperos a gosto. Após três horas na geladeira, retire a panceta e seque-a com papel toalha. Em seguida, ela deve ser confitada em banha e voltar novamente ao congelador por quatro horas. Corte-a em cubos, frite até dourar e sirva com goiabada por cima.
O torresmo do restaurante paulistano A Casa do Porco demanda uma dedicação muito maior do que um preparo qualquer do aperitivo. Não basta salgar a panceta, fatiar e fritar. Cada passo do modo de preparo da receita do chef Jefferson Rueda tem um quê de inspiração e experimentação por trás. Assim como a panceta, todos os pratos do estabelecimento que se tornou uma “instituição da carne suína” passam por um processo de testes antes de ser incluídos no menu e ir à mesa do freguês.
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Há um lugar especial para a criatividade que dá vida ao cardápio: o antigo lar da família Rueda, hoje carinhosamente apelidado de Lab. Fazendo jus ao propósito do espaço, o apartamento está localizado no edifício Copan, conhecido pela inventividade arquitetônica de Oscar Niemeyer, no coração de São Paulo. Ao sair do elevador no terceiro andar, o aroma guia o caminho até a porta de entrada azul-cobalto, junto de um adesivo com o rosto de sua esposa, Janaína Rueda, e uma pequena placa com a palavra “AXÉ”.
Quem recebe as visitas é um dólmã com o nome de Jefferson bordado, disposto de frente para a entrada. A peça foi usada em 2003 pelo chef no campeonato mundial Bocuse d’Or, no qual ele representou o Brasil. À esquerda, a cozinha com aparatos culinários metálicos, nichos de madeira e piso revestido de azulejo geométrico está movimentada. Quatro cozinheiras trabalham e preenchem o espaço, correndo de lá para cá. Entre elas, Jeffinho, como é apelidado, faz sugestões e comentários sobre o preparo. “Gosto de trazer desafios para elas”, comenta. “Tenho 26 anos de profissão. Aprendi tanta coisa, tenho tantas referências. Preciso me conectar com as novas gerações.”
Os profissionais alternam turnos entre o restaurante e a cozinha do laboratório, onde são criados novos pratos para o menu. O papel de Rueda é ensinar e deixar aprender. Para o chef de cozinha paulista, nascido em São José do Rio Pardo, cozinhar é intuitivo: “Quando você ama o que faz, é tudo muito fácil. Consigo ver solução para um problema em dois minutos”.
À direita, na sala de estar, uma mesa comprida de madeira guarda cadernos, louças e embalagens de delivery vazias. Tudo ali funciona como uma peça de um quebra-cabeça prestes a ser montado. “Tenho milhões de caderninhos, passo o dia inteiro anotando.” Para criar um menu, o chef começa pelo conceito, tentando visualizar como será o resultado. A partir de então, ele define quais serão as técnicas, os ingredientes e as histórias contadas por cada prato. A conclusão é feita na cozinha por meio de testes. Um dos projetos em que Rueda está envolvido é o de criar um porco vegetariano, com textura de carne suína, mas feito de cogumelos. Ele ainda quer montar uma “sequência de evolução”, em vez de um menu degustação. “Acordo cozinhando e durmo falando em comida”, confessa.
A parede ao fundo é da cor branca, mas quase todos os centímetros dela estão cobertos, seja por lembretes adesivos, seja por escrituras das mais diversas, como o letreiro grafitado com tinta vermelha “Laboratório de Ideias”. “A gente vai pregando várias coisas aqui. As ideias andam juntas, o tempo todo”, afirma. O mural ainda tem um mosaico com as palavras “Ciência”, “Matemática”, “Cultura”, “Geografia”, “História” e outros critérios levados em consideração para idealizar uma receita – além de uma placa ao centro com a frase “Never trust a skinny cook” – em português, “Nunca confie em um cozinheiro magro”.
Seguindo o curso da mesa, avistam as brises externas do Copan, com o véu azul da reforma pela qual tem passado nos últimos anos. Na janela estão penduradas fotos do chef com outros profissionais da área e de suas criações gastronômicas.
O ambiente em “L” tem uma segunda mesa, de alumínio, com esculturas e origamis em formatos de porco, além de utensílios de cozinha na prateleira inferior. “Aqui estamos em constante movimento. Agora queremos tirar a mesa de madeira e colocar mais fogões”, conta Rueda. Com a segunda onda da pandemia e o decreto da fase vermelha no estado, A Casa do Porco fechou novamente. Não fosse por isso, estaria servindo o novo menu, de outono-inverno, chamado “Criar, plantar, colher, cozinhar”. A rotina do Lab tem como base uma experimentação técnica, sempre antecipando as temporadas. “Minha cabeça já está pensando no cardápio primavera-verão.”
A sala de estar também abriga uma biblioteca, com duas grandes prateleiras e um móvel com mais três andares de livros coloridos de gastronomia. A coleção, que conta com livros em diversos idiomas, adquiridos pelo mundo, foi mantida no laboratório mesmo após a mudança.
O apartamento dos Rueda no Copan é carregado de história. Eles se mudaram quando Janaína estava grávida do primeiro filho e planejava abrir o Bar da Dona Onça, pois dessa forma poderia ficar próxima ao bebê durante o trabalho. Foi a primeira casa que compraram. “Moramos aqui até 2016. Na época, já tínhamos outro apartamento, também no centro, mas continuamos vivendo aqui. A gente só fazia festa no que moramos atualmente, que é grandão. Íamos embora junto com os convidados. Estávamos apegados. Mesmo mudando para o outro, o coração continuou aqui.” Com a mudança, Rueda sentiu a necessidade de um lugar para estudar e pesquisar sobre gastronomia, e assim transformou a antiga moradia em laboratório.
O espaço também serve para receber visitas, que ficam hospedadas nos quartos ao fundo. “Já recebemos o Ferran Adriá [espanhol considerado um dos melhores chefs do mundo] aqui para comer uma feijoada com a gente. Foi no Carnaval retrasado. A Janaína levou ele no meio da bateria de uma escola de samba, a Vai-Vai. O samba-enredo era sobre orixás, o cara amou.”
A troca com outros chefs também se transforma em ideias. É por isso que ele recomenda: “Quando você for para São José do Rio Pardo, experimente o torresmo do Carlão. O cara está fazendo isso há 50 anos, é uma maravilha”. O segredo de sua receita, talvez, tenha vindo de lá. “Tudo é inspiração, tudo tem um porquê, tudo tem uma história. É isso que me move. Fazer uma comida que não é só bonita e gostosa, mas que mostre a cadeia de pessoas que está por trás.”
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Para Rueda, a pandemia permitiu enxergar melhor todo esse processo e fez com que ele retornasse a suas raízes em São José do Rio Pardo. Lá, comprou um sítio e iniciou o projeto de uma escola de cozinheiros, para transmitir o valor dos alimentos e os conhecimentos da terra. “Cheguei à conclusão de que minha vida vai ser pelo amor”, conclui.