Como o chef João Diamante busca na gastronomia uma forma de ressignificar a região da Pequena África, no Rio de Janeiro
Reconhecido pelo The World’s 50 Best Restaurants por seu trabalho social, o baiano criado na capital fluminense está focado em valorizar suas origens
Quem é apaixonado por gastronomia sabe que o fascínio desse universo não é apenas o alimento em si. Claro que os sabores têm um grandissíssimo valor, mas é tudo muito maior do que o simples ato de comer. A origem dos ingredientes, a beleza do cultivo e a relação histórica, cultural e afetiva das pessoas com a comida são questões que emocionam tanto quanto uma receita perfeita do seu prato preferido.
Pode até parecer exagero para aqueles que se alimentam apenas como uma ação necessária de subsistência, mas vou provar que não há excesso nenhum nas minhas falas – e quem me ajuda nessa missão é o chef João Diamante. À frente do menu do restaurante Dois de Fevereiro, no Rio de Janeiro, e criador do projeto social Diamantes na Cozinha, que recentemente ganhou o prêmio Campeões da Mudança pelo The World’s 50 Best Restaurants, o baiano criado na capital fluminense vive hoje um caminho de retorno e ressignificação de suas origens a partir da culinária.
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Sua trajetória completa o trouxe até este momento, mas foi em 2023, por meio de um reality da produtora de vídeos MOV, do UOL, em parceria com a ECOA, que ele realmente deu um grande passo em seu autoconhecimento. Em uma série de quatro episódios chamada Origens – Um Chef Brasileiro no Benin, Diamante narra sua primeira experiência no continente africano, mais especificamente no Benin, Costa da Mina, região predominante no resultado do teste genético feito por ele no início do ano passado.
O país está entre os que mais tiveram pessoas traficadas para as Américas durante a escravidão, e foi ali que o chef brasileiro conheceu a comida de rua local, visitou a maior feira ao ar livre da África Ocidental e percebeu que o jeito de comer em Benin não era muito diferente do que conhecemos no Brasil. Após uma viagem que o fez refletir sobre passado, presente e futuro, Diamante voltou para o Rio de Janeiro focado em valorizar suas raízes.
“No momento, a minha missão é impactar e resistir para o meu povo, por isso eu decidi mudar todos os meus projetos para a Pequena África, ajudando na ressignificação daquele lugar”, conta o chef. Para quem não conhece, “Pequena África” é o apelido dado pelo sambista Heitor dos Prazeres à área que abrange os bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo, na zona portuária do Rio de Janeiro. Ocupada por uma população majoritariamente negra, a região tem sua história intimamente ligada ao tráfico de escravizados. “O foco não é esquecer o passado, mas resistir e mudar o futuro.”
O Dois de Fevereiro já fica no local, então agora o plano é levar os projetos Gastrobar e É Nóis. “O primeiro deles tem uma pegada de boteco contemporâneo, onde eu cozinho coisas que estão no dia a dia das pessoas, mas que muitas vezes não valorizamos, como vísceras ou miúdos. Já o segundo é um estabelecimento de collab com pequenos empreendedores. Compramos os produtos deles e colocamos no nosso cardápio, com nome e telefone de cada um. Isso ajuda a divulgar os seus trabalhos”, explica o chef. As duas casas estão fechadas temporariamente por causa da mudança de endereço.
“Também estamos organizando, para esse fim de 2024, o Cozinha de Favela, um projeto em que vamos ajudar 20 empreendedores da Pequena África com capacitação, desenvolvimento de produtos e divulgação. Vai ser um trabalho transmitido na Globo, então vai ganhar visibilidade”, revela. A iniciativa nasce por conta do receio de uma possível gentrificação na região, que está ficando cada vez mais movimentada, tendo sido apontada pela revista TimeOut de Londres como uma das mais “descoladas” do mundo. “Não queremos que grandes marcas e redes cheguem tomando o espaço de quem está ali há décadas, então vamos dar destaque aos pequenos negócios.”
No fim da primeira edição do projeto, a ideia é acrescentar esses estabelecimentos em um guia turístico divulgado pela Embratur, Riotur e Secretaria de Turismo do Rio de Janeiro. “Minha missão é esta: eu sou cozinheiro, mas a gastronomia também é minha ferramenta para transformar e tentar retribuir tudo o que me fez chegar aqui”, conclui Diamante.
Breve cápsula do tempo
A trajetória de João Diamante merece uma matéria à parte, mas vale fazer uma breve retrospectiva para quem ainda não o conhece. O chef nasceu na Bahia, mas foi criado na favela Nova Divineia, no Complexo do Andaraí, no Rio de Janeiro. Na infância, conta ter participado de mais de 20 projetos sociais. “Fiz de tudo, de balé a jiu-jítsu, e é por isso que entendo a importância do trabalho social na vida de uma pessoa que se encontra em vulnerabilidade social”, ressalta.
Na época, sua relação com a comida era tipicamente brasileira: suas memórias estão ligadas aos churrascos com a família. Foi apenas aos 17 anos, quando ingressou na Marinha, que teve o primeiro contato profissional com a cozinha. “Para a maioria, a cozinha era um castigo, mas eu me interessei porque o horário era mais flexível e assim eu poderia continuar estudando. Além disso, sempre gostei de servir e deixar as pessoas felizes por meio da comida.” Aos poucos, o tempero de Diamante começou a chamar atenção e ele foi subindo de cargo. No último estágio, passou a cozinhar para o almirante, que o incentivou a estudar gastronomia.
“Financiei o meu estudo e equilibrei com o trabalho, mas isso me deixava muito cansado. Uma professora até chegou a dizer que estava preocupada comigo, achando que eu não conseguiria terminar o curso”, recorda. Mesmo exausto, no entanto, o chef se formou entre os três melhores da faculdade. O reconhecimento fez com que ganhasse uma bolsa de estudos para trabalhar com Alain Ducasse no Le Jules Verne, em Paris, o restaurante mítico da Torre Eiffel. Sem falar francês, o brasileiro viveu um ano difícil, mas foi ali que desenhou o projeto do Diamantes na Cozinha e decidiu que voltaria ao Brasil para honrar suas raízes. Hoje, já impactou mais de 4 mil famílias com seu trabalho. Um número que prova a força da gastronomia social.
Por Beatriz Calais | Matéria publicada na edição 136 da Versatille