Como a baunilha brasileira impacta na gastronomia nacional
A baunilha também floresce em solo nacional, gerando impacto positivo para pequenos produtores e para a alta gastronomia
Em referências literárias sobre os astecas, é possível encontrar menções ao “tlilxochitl”, que significa “flor negra”, uma iguaria aromática que realçava o sabor dos chocolates que eram oferecidos aos nobres e guerreiros da comunidade. A especiaria valiosa era produzida pelos totonacas, ocupantes das regiões costeiras do Golfo do México, que comercializavam o produto para os astecas por um alto valor. Hoje, sabe-se que a mitológica “flor negra” é um apelido carinhoso para a baunilha, numa alusão à cor do fruto depois de curado.
E, diferentemente do que acontecia na civilização asteca, ela teoricamente não é oferecida apenas aos nobres, pois está presente em grande parte dos doces de padarias, dos sorvetes de bairro e até de cosméticos, com seu aroma inconfundível. Porém, para a decepção de muitos, é necessário fazer um alerta chocante: essa iguaria popular não é a baunilha verdadeira. A essência mundialmente conhecida, em sua maioria, é fabricada com vanilina sintética, majoritariamente extraída de petroquímicos. Essa versão pode ser até 20 vezes mais barata do que a original.
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A realidade, nua e crua, é que a baunilha verdadeira está entre as três especiarias mais caras do mundo – uma ironia da vida para nos aproximar dos astecas. Isso acontece porque sua produção não é nada simples. A especiaria é produto de uma flor, mais especificamente uma vagem da orquídea do gênero Vanilla, que precisa ser bem cuidada e polinizada para gerar frutos. No entanto, a orquídea floresce apenas um dia por ano, o que faz com que seja quase impossível depender somente das abelhas para o trabalho.
Foi apenas no século 19 que a polinização manual foi realizada pela primeira vez, o que tornou possível a venda de mudas e o cultivo da iguaria fora do México. Hoje, a ilha africana de Madagáscar é a maior produtora mundial de baunilha. Mesmo assim, o trabalho é árduo e o valor reflete essa realidade. Além disso, a produção de Madagáscar não dá conta da demanda mundial, o que prejudica a qualidade do produto e o cuidado com o meio ambiente. O que muitos esquecem, no entanto, é que existe baunilha em outros lugares do planeta. Em especial, no Brasil.
Dulçor nacional
“O Brasil é o país que mais tem diversidade de baunilha no mundo. Temos 35 espécies nativas – embora algumas sejam endêmicas e também ocorram em outros territórios. Dessas, pelo menos dez possuem potencial aromático, enquanto as outras são apenas ornamentais”, explica Luiz Camargo, fundador da Escola da Baunilha e consultor do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (Iica).
“As comunidades mais antigas, quilombolas ou ribeirinhas, não chegaram a ter uma tradição com o uso da baunilha. Elas sabiam da existência, mas como a planta, ao ser cortada, solta um leite que gera coceira em contato com a pele, havia o receio de manusear o produto”, completa o especialista. “Hoje, as comunidades já entenderam que essa é uma planta valorizada e a produção brasileira está em ampla expansão. Chegamos a mandar baunilha para fora porque não temos mercado interno para tanta colheita.” De certa forma, o desafio agora é fazer com que o brasileiro conheça o produto nativo do próprio país.
A baunilha mais conhecida do mundo – tirando a essência industrial – é a de Madagáscar. Seu aroma já está nas cozinhas de restaurantes estrelados de diversos países. Mas, assim como um bom vinho, cada especiaria tem um sabor único, de acordo com o terroir.
“Eu gosto de compará-las com a banana, porque tem muitas opções. O sabor da banana-da-terra é diferente do da banana-nanica, por exemplo”, ressalta Camargo. “Com a baunilha é a mesma coisa. Algumas têm notas amadeiradas, enquanto outras são mais suaves. Também há divergência no tamanho, já que nossa iguaria do cerrado é dez vezes maior do que a do México. Há realmente muita diversidade e não precisamos nos limitar a apenas uma espécie. Muitos chefs já perceberam isso.”
Um bom exemplo é Brenno Floriano, chef gelatiere da San Lorenzo Gelateria – que apareceu no ranking das 50 melhores sorveterias do mundo na edição de 2022 do Festival Mundial do Gelato. Em parceria com a Vanilla Brasil, do sul da Bahia, ele desenvolveu um simples sorvete de baunilha que acaba surpreendendo os clientes por não ter o sabor caramelizado comumente relacionado à especiaria. “Além de ser delicioso, estamos ajudando a fomentar e valorizar nossa produção nacional”, destaca.
Para Tarcísio Machado, presidente da Vanilla Brasil, esse reconhecimento é resultado de um longo trabalho de marketing e identidade visual para a inserção da marca no mercado da alta gastronomia. “Vendemos para vários restaurantes e também para redes como a Casa Santa Luzia e o Empório Santa Maria. Além da fava, fazemos a pasta da baunilha, que é muito procurada pelos chefs. É um produto criativo e que oferece credibilidade e qualidade”, conta. “Estamos nesse segmento há cerca de seis anos, mas sabemos que não é fácil. Os pequenos produtores têm muita dificuldade.”
Com trabalho assíduo na Escola da Baunilha, Camargo concorda com a afirmação de que esse é um mercado complicado – e é por isso que um dos objetivos de seu projeto é gerar capacitação e contatos para pequenos produtores. Atualmente, já são mais de 60 apoiados pela iniciativa. “Como um pequeno produtor do cerrado, sem investimento, vai chegar a um restaurante cinco estrelas em São Paulo?”, questiona. “Ele precisa de um caminho que gere retorno; afinal, o profissional rural é fundamental para que a cadeia aconteça. Baunilha é um produto de luxo, o que faz com que esse segmento seja muito complexo.”
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Na visão do especialista, a popularização da baunilha nacional nos restaurantes e o crescente conhecimento do consumidor sobre a existência de uma iguaria tão rica são os principais segredos para a prosperidade do mercado. “A baunilha é versátil e pode ser explorada em receitas doces e salgadas. É um produto caro, mas que merece ser conhecido. A cada depoimento que damos, a mensagem é reverberada”, conclui.
Nas boas mesas brasileiras, a baunilha brasileira
Para confirmar o que foi dito por Camargo, a Versatille conversou com alguns chefs renomados para saber como eles usam a baunilha brasileira em seus restaurantes. Confira a seguir:
Maní
Vieira, pepino, flor de sal, azeite de baunilha do cerrado e borago
“Temos uma qualidade de produto muito grande que muitas pessoas não conhecem nem valorizam. Quanto mais usamos, mais geramos informação sobre o produto.” – Chef Willem Vandeven
Restaurante Origem
Fondant de chocolate com baunilha da Vanilla Brasil
“Temos como missão não só alimentar as pessoas com os nossos restaurantes, mas também transformar vidas através da valorização do trabalho desses produtores.” – Chef Lisiane Arouca
Animus
Drinque Clemenules (uísque, calda de tangerina clementina com cumaru e limão)
“É nosso papel apresentar e propagar cada vez mais a cultura brasileira, suas especiarias e sabores.” – Bartender Vanessa Civiero
Sorveteria do Centro
Clássico sorvete de baunilha do cerrado
“O diferencial é um gosto terroso, menos adocicado, com aroma muito mais presente de especiaria. Usamos para valorizar um ingrediente nobre, muitas vezes superior, de um produtor que exalta a terra, a forma de plantio e o meio ambiente.” – Chef Janaína Torres Rueda
Por Beatriz Calais | Matéria publicada na edição 129 da Versatille