“Temos o filho que precisamos ter”, diz autora de livro sobre filho autista

No livro Palmas para António Lana Bitu conta, com bom humor e sensibilidade, como o autismo do filho mais velho ampliou seu mundo

É como ir a um restaurante bem indicado, recomendar exaustivamente que seu prato venha sem cebola e, já nas primeiras garfadas, descobrir incontáveis nacos de… CEBOLA!” A analogia da cebola inesperada me ocorreu num papo no qual eu tentava explicar a alguns amigos sem rebentos o intenso embate travado entre expectativa e realidade ao ter um filho. Eles protestaram. “Forçou, hein, Bitu? Nada a ver!” Mas acabaram convencidos (e esclarecidos) pela pertinência do parâmetro. Pois, assim como no restaurante, na maternidade/paternidade, ao se dar conta das “cebolas”, a indignação e não aceitação levam você a reclamar com a gerência.

 

Essa, porém, reage como de praxe. Limita-se a sorrir placidamente, com ares de “o cliente tem sempre razão”. Entretanto, não diz nem faz nada efetivo. Em choque com o descaso do estabelecimento, você cogita largar o prato e ir embora. Tarde demais: já está faminta por ele! Decide, então, remover as cebolas por conta própria. Começa disposta a tirar tudo de uma vez. Mas logo constata que é melhor se for aos poucos, enquanto desfruta o prato. Determinação e desânimo se alternam nessa empreitada. Lágrimas, gargalhadas irônicas, súplicas e berros também. O tempo passa e você percebe que, por mais que procure retirar cada pedacinho de cebola, o sabor dela, ainda que discreto, perpetua-se no prato, pois faz parte da essência dele.

 

A vida segue e um dia, para sua absoluta surpresa, você se percebe em relativa paz com isso. Não só por ter se habituado ao paladar, mas também porque, quem diria, dependendo da mastigada, ela até incrementa o prato! Sim, todos falam das delícias de ter filho (risos abafados). Mas poucos comentam os dissabores – apesar de todos, invariavelmente, sermos obrigados a eles em algum momento. Pois não há como escapar do 11º mandamento, nunca mencionado por talvez ter ficado na parte de trás da pedra da Moisés. Diz ele: “Jamais terás o filho que idealizastes”. Afinal, filho não é uma cópia nossa. Não se comporta como resultado da exata soma de dois DNAs, nem é a resposta dos céus a nossas preces.

 

Nós definitivamente não temos o filho que desejamos ter – temos o filho que PRECISAMOS ter, para que a convivência com ele seja uma imperdível oportunidade de educá-lo enquanto reeducamos a nós mesmos. A reprogramação de expectativas que isso exige não é nada fácil de engolir. Envolve muita frustração, muito exercício de humildade e resiliência… que se converterão em aprendizados e realizações tão incríveis que você não apenas devorará o prato acebolado como pagará, sorridente, a salgada conta cobrada por ele!

 

Palmas para António
(Editora Astral Cultural, R$ 34,90)

 

Ponto de Vista | por Lana Bitu | Publicado originalmente na edição 115 da VERSATILLE

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