Popularizam-se menus acompanhados de bebidas não alcoólicas

Harmonizações abstêmicas com opções para beber versáteis e funcionais podem ser a terceira via da alta gastronomia

Drink Boas Vindas de Manu Buffara
Boas Vindas, a sugestão quase esotérica de Manu Buffara (Rubens Kato)

Antes de pensar em castigo, questões de saúde, religião, idade, promessa, segurança rodoviária, gravidez, gosto ou mesmo economia pode levar uma pessoa a não consumir bebidas com álcool em um restaurante. Sendo assim, por razões de humanidade, água e nada mais do que água não pode ser o único líquido destinado a matar a sede desse cidadão, não é mesmo?

 

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Injustiça de bartenders, insensibilidade de chefs de cozinha ou pura preguiça, fato é que escapar da oferta de aguinha, refrigerante industrial e suco ainda é um desafio, por mais que se noticie movimentos como o Dry January (abstenção alcoólica no mês de janeiro que virou modinha nos Estados Unidos e na Europa) e a valorização de mocktails (drinques 0% etílicos). 

 

Calma, ninguém quer diminuir a importância do vinho, criar picuinhas, tampouco pregar a lei seca, mas harmonizações abstêmicas capazes de provocar ciuminho no mais ortodoxo dos enófilos podem ser a terceira via da alta gastronomia. Duvida?

 

Na virada do ano, a França não abriu mão do champanhe, porém assistiu a reparos nas cartas de bebidas da constelação Michelin. Anne-Sophie Pic, por exemplo, expandiu o conceito aplicado em seu três-estrelas (a Maison Pic, em Valence) para o Beau-Rivage Palace Lausanne, na Suíça: “Consideramos o café tão poderoso e elegante quanto muitos vinhos finos. Para nós, é uma bebida que podemos servir de várias formas e em diferentes temperaturas. Um café excepcional nos proporciona experiências excepcionais”.

 

“Pepitas” como suco de cereja ou kombucha encontradas na região também são exploradas pela chef e sua sommelière, Paz Lavinson. Mauro Colagreco e Alexandre Mazzia estão nessa mesma toada. No caso desse último, a harmonização comida-borbulhas (para a qual foram degustados mais de 300 champanhes) segue hit em seu AM, em Marselha; todavia, o chef triplamente estrelado passou a oferecer sucos de frutas e ervas frescas para dar ritmo e aumentar a potência do que faz na cozinha a cada etapa de seu menu degustação.

 

Imagen da bebida Yam’Tcha

Yam’Tcha, pioneiro em propor chás ao longo das refeições em Paris (Divulgação)

 

Ok, a França está ao lado da Dinamarca e, portanto, do Noma, que faz isso há tempos. Mais: tem in loco o Yam’Tcha, que, bem antes de virar episódio da Netflix, já propunha o chá como elemento central de sua experiência, mesmo quando sugerir uma xicrinha de infusões chinesas não era exatamente convidativo à francesada.

 

A bem da verdade, a princípio, a chef Adeline Grattard e seu marido, Chi Wah Chan, sentiam que não eram levados a sério. Não raro, esse tipo de harmonização era escolhido por quem queria economizar calorias, visto que o chá-verde estava na moda. Apesar disso, o garimpo de chás especiais e o diálogo com as receitas jamais cessaram. Ao contrário, evoluíram. Assim como o paladar do comensal, hoje mais sensível ao casamento que traduz tão bem o conceito do restaurante.

 

Complexos tupiniquins à parte, nos mesmos idos de 2009, em São Paulo, Alex Atala fazia uma movimentação semelhante. Lançava no D.O.M. um menu vegetariano e sugeria águas aromatizadas com ingredientes tipicamente brasileiros para intensificar os sabores vegetais. A iniciativa rendeu mídia, rendeu polêmicas (mas quanto pode custar uma água, Brasil?!) e significou muito para a gastronomia nacional. Contudo, não pegou e acabou saindo de cartaz.

 

Jogando nesse time, Manu Buffara também elaborou e aboliu a harmonização sem álcool, mas deixou opções. Além do coquetel Boas Vindas (à base de um fermentado de batata-doce roxa), a chef do Manu, em Curitiba, criou o Tudo São Flores, que não destoa de nenhum tempo de seu menu autoral.

 

“É um drinque feito de um fermentado de flores orgânicas colhidas na melhor época lunar para potencializar o efeito medicinal de cada flor. Geralmente camélia, flor de sabugueiro e camomila. Não é sempre o mesmo, é de acordo com cada safra, mas é sempre utilizado mel de abelha nativa para fermentar. Ele fica levemente adocicado, bem refrescante, porque também vai um xarope de hibisco feito na casa, rodela de laranja e ervas do dia. Outras opções são os sucos de frutas nativas feitos na hora e as kombuchas”, explica ela. 

 

Esforço à parte, goles assim correm o risco de parecer prêmio de consolação: “Passou da hora da harmonização sem álcool deixar de ser vista como infantil ou coisa de abstêmio e se tornar frequente e possível. Ela exige criatividade e técnica – e isso não costuma faltar em grandes restaurantes. É só direcionar o empenho além da cozinha e enxergar não uma tendência mundial, mas uma necessidade real”.

 

O comentário de Carolina Oda, consultora de bebidas, é esclarecedor. Uma ótima bebida não alcoólica deve ter todos os elementos de uma ótima bebida alcoólica, ou seja, deve ser uma mistura equilibrada de acidez, doçura, amargor e salinidade, ter camadas de sabor que florescem na boca enquanto se come, bebe ou simplesmente relaxa. 

 

Na prática, a teoria é compartilhada por Caio Soter, do Pacato, em Belo Horizonte: “Apesar de ter um restaurante de alta gastronomia, com menu degustação e ambiente mais elegante, queria muito que ele fosse para todo mundo. Minha mãe não bebe álcool e na maioria dos lugares que visitávamos as opções eram tediosas, se não preguiçosas, e ela se rendia a refrigerante ou suco. Dessa observação veio o desejo de incrementar a experiência dos comensais como ela”.

 

Nesse sentido, uma soda de castanha brasileira abre o paladar e, na sequência, o trio de snacks tem sintonia perfeita com o Sabariá (néctar e compota de jabuticaba, flor de laranjeira, toque cítrico e ora-pro-nóbis). O frango vai bem com o Brisa de Minas (coquetel de laranja, pequi e wasabi), o jiló “dá as mãos” ao Sertão de Minas (composto de “vinho” de jurubeba e gema de tangerina) e o baile do cozinheiro metido a mixologista segue até o encontro da sobremesa de milho com o Bolo de Mandioca com Coco (drinque inspirado em “doce de vó”).

 

Chef Janaína Rueda, da Casa do Porco

Janaína Rueda assina as novas bebidas da Casa do Porco (Thomas Baccaro)

 

Outra vivência harmoniosa pouco habitual foi implementada pela Casa do Porco, tida como o melhor restaurante do Brasil. E não foi de uma hora para outra. Há anos Janaína Rueda fazia acenos durante o menu degustação, fosse com kombucha muito antes do hype ou com blends de café. Curiosamente, a partir da pandemia e da produção artesanal de licores, a chef passou a repensar as bebidas na gastronomia.

 

O Pinga Ni Mim, da Casa do Porco está entre as opções de bebidas não alcoólicas

Com pacová, alecrim, limão-rosa e mel, o Pinga Ni Mim sozinho acalma o estômago. Na casa do porco, acompanha a carne suína assada (Divulgação)

 

“Vários fatores me levaram a isso. Primeiro: os transtornos mentais que foram detectados no período e o aumento do consumo de álcool. O mundo está em transformação energética e a necessidade de incluirmos coquetéis que não nos alterem, que sejam funcionais e sustentáveis é a nova tendência deste planeta, e é bem divertida para mim”, revela a dona onça.

 

Vai daí que Janaína trocou o açúcar refinado pelo poder antibiótico dos meles, aproveitou seu sítio em São José do Rio Pardo para testar variedades de hortaliças, frutas, ervas e plantas e, nessas, descobriu que o próprio quintal era uma verdadeira mina de ouro para a produção de novas bebidas.

 

Infusões de ervas, flores e especiarias, xaropes, licores sem álcool e fermentados curiosos, como o koso de beterraba, que tem inspiração japonesa, são combinados em fórmulas secretas que, ao comensal, podem parecer mágicas, visto que embalam a degustação com graça e sem pesar.   

 

Feiticeira assumida, por trás de cada uma delas a chef obtém o equilíbrio não apenas pelo ajuste de doses exatas de ingredientes, mas pela precisão das temperaturas, pela escolha adequada de taças e copos, pelo apelo de cores e aromas: “O álcool ajuda na digestão, a pessoa acaba gostando e come mais, mas sem ele você consegue se conectar com a verdade daquela experiência, porque não existem as máscaras sedutoras do álcool. A bebida não alcoólica é genuína, diverte sem alucinar”.

 

O Cajueiro, do Quincho está entre as opções de bebidas não alcoólicas

Com cajuína, violeta, flor de laranjeira e hortelã, o Cajueiro, do Quincho, vai bem com cenouras coloridas e homus de Pistache (Divulgação)

 

De novo: o objetivo não é demonizar o vinho e outros alcoólicos nem substituí-los, mas proporcionar opções de bebidas coerentes. Algo que nem só a haute cuisine passou a enxergar. Mari Sciotti, do vegetariano Quincho, crê que “complementar sabores com bebidas é tornar a refeição mais rica. A gente passou tanto tempo acostumada a só ter suco de laranja e refrigerante em restaurante que esqueceu que a coquetelaria pode fazer você sair mais feliz da mesa do que quando se sentou”.

 

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A Soda Verde (com capim-santo e limão-siciliano) e o Kombucha Fizz, quando acompanham o arroz de tomates, traduzem a intenção da chef. O Airela (cordial de romã, suco de cranberry e manjericão) com croquete de milho-verde e queijo taleggio também. E reforçam que ao já puxado ofício de cozinheiros, sommeliers e mixologistas é uma trabalheira que se soma pela recompensa de incluir e surpreender comensais. 

 

Por Fernanda Meneguetti | Matéria publicada na edição 124 da Versatille

 

Para quem pensa em ir para o Japão em busca de uma nova vida, também poderá procurar empregos aqui.