Por trás dos pratos: Belcanto
O restaurante comandado pelo chef José Avillez é uma ode às portugalidades, sem abrir mão da criatividade que norteia a cozinha
José Avillez é conhecido no Brasil, fato que vai além de sua participação no reality Mestre do Sabor. Ele está à frente do grupo homônimo, que possui diversos conceitos de restaurantes – em 2022 abre as portas do Encanto, focado em vegetais – que estão, em sua maioria, localizados em Portugal, exceto por um, em Dubai. Foi no começo de 2012 que Avillez inaugurou o Belcanto, restaurante originalmente fundado em 1958. Rapidamente, um ano após a abertura, o estabelecimento recebeu sua primeira estrela Michelin. Atualmente são duas, segundo a edição mais atualizada do Guia, divulgada em dezembro de 2021.
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“Estamos preparados para a terceira, mas isso não é o mais importante. O mais relevante é a sala cheia. Naquela mesa (aponta para outro lado do salão), outro dia estava sentado um casal da Cidade do México, e uma das razões pelas quais eles tinham vindo para Portugal era o restaurante. Eles estavam encantados. Nós temos clientes de todas as partes do mundo, e o mais importante para nós é o sorriso que conseguimos colocar na cara das pessoas quando estão a comer. Os guias são importantes, mas às vezes também desaparecem, e o que fica é a qualidade intrínseca do que fazemos e a felicidade dos comensais”, explica Avillez, em uma manhã gélida e ensolarada do último mês de outubro.
Há dois anos, o restaurante mudou de imóvel, mas manteve-se no Largo de São Carlos, e vizinho ao original. O pé-direito alto e com teto que revela arcos – e, consequentemente, a idade da construção –, as duas cozinhas que podem ser observadas do salão (uma delas, de finalização, inteiramente aberta) e a composição elegante da decoração complementam o principal de um restaurante: a comida. Confira, na sequência, a conversa com José Avillez.
Versatille: O que é fundamental em uma cozinha profissional?
José Avillez: A disciplina, os ingredientes que entram nela, que devem ser sempre de qualidade, independentemente do tipo. A paixão com que se faz as coisas, o trabalho em equipe, as regras que devem ser seguidas também. A honestidade é essencial, assim como a maneira com que se trabalham os ingredientes e como se trata a equipe. Tudo é muito importante.
V: Como é a concepção de um menu?
JA: Cada restaurante do grupo tem um posicionamento e uma linha que devemos seguir. Eu diria que o Belcanto é o mais desafiador, pois, para pensar nos pratos, tem de corresponder à muita expectativa, à história das estrelas Michelin. Nós estamos seguindo um caminho linear. Eu costumo dizer que, às vezes, encontro inspiração em todo lado, e, muitas vezes, em lado nenhum. Temos de ficar disponíveis para as ideias virem até nós, para que consigamos criar. No Belcanto tem muitas portugalidades, tentar não pôr aqui sabores que não são portugueses, e, se for para inserir, precisa ter um contexto. Quando tem um contexto faz sentido – por exemplo, temos atualmente um carabineiro (um camarão grande), que é um produto local, e eu faço em uma preparação que os portugueses levaram da Índia para a Tailândia e também Moçambique. É um prato com a cabeça do crustáceo, que tem a questão histórica, mas a portugalidade atrelada. É sempre necessário ter uma coerência, a ideia de que os menus, ou mesmo a carta, sejam uma experiência na qual exista um fio condutor. E por isso, de fato, há mais coisas em que se pensar quando se cria um prato para o Belcanto.
V: No Belcanto, são dois menus, além do à la carte. Conte-me um pouco de cada um deles.
JA: Tem o menu Belcanto, que é uma combinação de pratos mais clássicos e mais recentes, em tempo de criação, que está descrito no cardápio, com todas as etapas que serão servidas. E o Evolução, que representa as nossas novidades, que muda de forma mais rápida, e que não está descrito, funciona como surpresa, é um bocadinho maior e que não fazemos sempre igual. Não há modificações estruturais nele, mas às vezes muda-se um snack, uma entrada, substitui-se algo, pois trabalhamos com produtos frescos, da estação, que podem não estar disponíveis, assim como pode aparecer algo novo de que nós gostamos. Temos um à la carte, com algumas opções, mas diria que o vendemos cada vez menos, e cada vez mais a degustação.
V: Como foi a reabertura após o segundo lockdown de Portugal, que ocorreu entre janeiro e o começo de abril de 2021?
JA: Mudamos a carta e o menu e aumentamos as opções de pratos avulsos. Tivemos algum tempo, quando ficamos parados, pois a primeira fase foi só pensar em preocupações. Depois, começamos a ver as coisas serem resolvidas, tivemos mais tempo para criar novos pratos. Foi uma mudança mais profunda, desenvolvemos um menu degustação 100% novo. Há sempre uma evolução, mas acho que chegamos a estado de cozinha muito estável. É mais sobre um caminho que estamos a seguir.
V: Quais tendências observa na cena gastronômica?
JA: Acredito que é vermos, cada vez mais, restaurantes de alta cozinha, mais gastronômicos. Eu acho que, se calhar, é mais o serviço que deixará de ser tão formal, haverá uma informalidade maior. Por um lado, irão existir restaurantes que se aproximarão mais do farm-to-table, com uma cozinha mais tradicional, maior identidade local, e outros focados na experiência, com tetos que mudam de cor, por exemplo, valorizando a questão da imagem. Algo que seja mais como ir a um espetáculo, em que não é sobre conversar com as pessoas, mas sim estar em silêncio e observar.
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V: O que pensa sobre ser o único restaurante português na lista atual 50 Best, na posição 42?
JA: É muita sorte estar entre os 50 melhores do mundo. Seria mais provável eu não estar entre eles do que estarem três ou quatro portugueses. Por isso, aqui, eu vejo mais uma representação de Portugal, não sendo uma distinção nossa, mas sim distinção do país, de estarmos lá e divulgarmos a nossa cozinha. Se pensarmos nos melhores restaurantes que há no mundo inteiro, eu tenho certeza de que o Belcanto não é um dos melhores do mundo. A menção acaba sendo uma forma de representatividade para os cozinheiros portugueses. Não vejo isso como sendo uma premiação para mim, e sim para o destino e a cozinha local. A subjetividade de tudo isso, o que é o melhor do mundo, afinal? O melhor do mundo é o Ronaldo – o Cristiano, não o Gaúcho (risos).
Por Giulianna Iodice | Matéria publicada na edição 124 da Versatille