Por dentro dos bastidores da fabricação artesanal de sakes no Japão

O chef Gerard Barberan relembra sua experiência em uma viagem pelo Japão visitando fábricas da clássica bebida

No Japão, sakagura é o nome que se dá a todo e qualquer local onde o nihonshu, conhecido como sake no mundo ocidental, é produzido, seja de forma artesanal, seja ultramoderna. Para um entusiasta da cultura japonesa como eu, entrar nessas kuras (fábricas) é como imergir em um universo fascinante, repleto de sabores, tradições e histórias. 

 

A oportunidade surgiu no último inverno, a convite da Nishiki, empresa responsável pela importação dos nihonshus com que trabalhamos, tanto no restaurante Kuro quanto no recém-inaugurado bar Shiro, ambos dedicados exclusivamente à gastronomia japonesa, localizados em São Paulo. O propósito era conhecer de perto as pessoas e os processos por trás de cada garrafa de nihonshu que servimos, permitindo-nos disseminar com maior propriedade seus saberes e trabalhos. 

 

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A jornada etílica teve início na cidade costeira de Shiogama, na província de Miyagi, ao norte de Tóquio. Famosa pela pesca de atum, é nela que se encontra a kura de 300 anos da Urakasumi, uma das marcas de nihonshu mais premiadas do Japão – com destaque para o Honjikomi Urakasumi Honzojo, uma bebida fresca que vai muito bem com frutos do mar. Fomos recebidos pelo toji Isao Akama, o mestre por trás de toda a produção da bebida que se resume a apenas três ingredientes: arroz, água e koji. 

 

Por lei, as sakaguras são obrigadas a usar a água da região em que estão instaladas. Não à toa, a maior parte das kuras se localiza perto de nascentes, rios e, principalmente, das montanhas, que têm maior precipitação de chuvas e dão origem a cursos de água leve (nansui), puríssima, com pH neutro e baixo teor de minerais, resultante da filtragem do degelo por rochas vulcânicas – características que ajudam a formar a base de nihonshus mais redondos e leves. 

 

 

Assim como acontece com o vinho, diferentes tipos de arroz podem ser utilizados na produção – daquele de consumo diário às inúmeras cepas de sakamai, arroz próprio para a fabricação de nihonshu. A yamadanishiki, por exemplo, é uma das espécies mais utilizadas, pois apresenta maior taxa de amido e textura firme em seus grãos alongados, características essenciais para suportar o longo processo de fermentação. 

 

Mas, ainda que a água e o arroz sejam fundamentais, a alma do destilado mora de fato no koji, o malte de arroz fermentado que faz toda a mágica acontecer. Tanto que, mesmo nas kuras mais tecnológicas, ainda hoje é polvilhado manualmente sobre a massa de arroz polido, lavado e cozido no vapor. É a partir de sua adição que têm início a fermentação e a conversão do amido dos grãos em açúcar e que, no fim de um ciclo muito mais intrincado do que o da produção de vinho, resultará nos complexos sabores e aromas da bebida. 

 

 

Hoje a fábrica é comandada pela 13ª geração da família Saura, na Urakasumi, e a modernidade das máquinas se mescla ao trabalho artesanal ao longo de todo o processo. Enquanto um sistema de ventilação facilita o controle da temperatura do koji, é o olhar e o olfato aguçados do mestre Akama que determinam o momento exato para interromper a fermentação. 

 

Sob a neve que caía, rumamos para a cidade de Murata, lar da sakagura Kenkonichi, cuja produção jamais havia sido visitada por um ocidental. Viramos atração, em uma troca mútua de admiração e respeito. Conduzido por membros da família – que ainda reside no mesmo complexo da fábrica –, tive provas de que paciência, técnica e respeito pela natureza são elementos essenciais na criação de nihonshus da mais alta qualidade.

 

Na costa oeste da ilha encontra-se a cidade de Sakata, onde está localizada a jovem produção da marca Fumotoi, de “apenas” 120 anos. Essa era a visita pela qual mais ansiava. Não só porque eles são os responsáveis pelo rótulo Fumotoi Omachi, de que eu gosto muito, mas especialmente pelo trabalho de resgate que vêm realizando com o omachi, uma variedade ancestral de arroz que requer manuseio delicado e estava em desuso, mas está se tornando febre. O trabalho é comandado por Sato San, o mestre toji do Fumotoi, considerado um pequeno gênio no mundo do nihonshu. Com grãos maiores e concentração mais alta de amido, a cepa tende a gerar bebidas com textura densa, aroma suave, herbal e terroso. 

 

Mais ao sul da ilha, próximo a Hiroshima, a pequena sakagura da Hunshu Ichi, fundada em 1916 pelos irmãos Umeda San, Sawajiro San e Naojiro San, vale-se da água do Monte Iwataki, localizado logo atrás da empresa, como ingrediente especial. Ali, mais do que testemunhar os passos do processo milenar, tive a honra de participar ativamente da produção que se encontrava em curso quando chegamos. 

 

Ao lado de um funcionário vestindo a camisa da seleção brasileira em nossa homenagem, um gesto de omotenashi (hospitalidade japonesa), pude ajudar no transporte do arroz para a sala de koji e depois no armazenamento das massas nas mesas de fermentação. Um processo muito rápido e preciso para não comprometer o resultado. 

 

Com marketing levado tão a sério quanto nas mais prestigiosas casas de champanhe, a imponente Dassai, situada na cidade de Iwakini, na região de Yamaguchi, une tradição e inovação. Da modesta casa à beira do rio que deu início à história da empresa há 75 anos, resta apenas uma foto na parede do prédio de sete andares que abriga hoje toda a produção de uma das marcas de sake mais conhecidas no mundo. 

 

Ali é possível fazer visitas guiadas para acompanhar cada etapa de elaboração das bebidas, com direito a sala de degustação e lojinha ao fim do tour com suvenires personalizados e uma gama de produtos feitos em collabs – de “skincare” a sorvetes. 

 

Sem dúvida, foi uma viagem inesquecível, em que pude testemunhar de perto todas as etapas desse processo milenar, compartilhando conhecimentos com os mestres. Uma experiência profundamente construtiva para entender que, mais do que uma bebida, o nihonshu é um reflexo da cultura japonesa. Uma celebração da dedicação, da metodologia e da elegância de seu povo. 

 

Por Gerard Barberan | Matéria publicada na edição 133 da Versatille