“O ser humano precisa de algum lugar para escapar”, diz a artista Camila Alvite

Formada pela Sociedade de Belas Artes de Lisboa, a brasileira busca despertar interpretações únicas dos espectadores por meio de suas pinceladas

A artista Camila Alvite na exposição Um Minuto Antes (Divulgação)

Camila Alvite se aprofundou na pintura, área que sempre a interessou, no começo dos anos 2000, após estudar na Sociedade de Belas Artes de Lisboa. Flertando com cores, camadas e profundidades, cria obras que trazem principalmente rostos, nítidos, encobertos e até mesmo bem desfigurados, com poucos elementos que os aproximam de rostos convencionais. Atualmente é representada pela galerista Bianca Boeckel, proprietária da galeria homônima localizada em São Paulo. Nas palavras da galerista: “A artista traz em sua nova série pinturas (como a que ilustra a capa desta edição) carregadas de tinta e pinceladas que retratam rostos cobertos por ainda mais tinta. Aqui, a obra já não trata de capturar uma imagem realista do retratado, e sim, através das construções, esboçar um caminho para uma jornada de autoexploração e redescobertas. Ela avança e cria figuras com rosto encoberto, apagado, como seres que procuram uma forma de existir. É como se a artista perguntasse quem é aquela pessoa e o que ela quer dizer, deixando boa parte da resposta para o espectador desvendar. Sua inspiração vem do livro As Existências Mínimas, de David Lapoujade, que trata das potencialidades que acompanham cada existência”. Confira entrevista na íntegra.

 

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Versatille: Como se descobriu artista? 

Camila Alvite: Eu estudei arquitetura e também comunicação visual. Após me formar, fui morar em Lisboa, no começo dos anos 2000, e foi quando comecei a fazer um curso de pintura na Sociedade Nacional de Belas Artes. Eu já tinha feito outros, no passado, algumas coisas menores, mas, quando mudei para a capital portuguesa, entrei nesse curso de dois anos, mas parei um pouco antes de terminar. Era bem clássico, e aprendi a pintar com alguma técnica, e, quando voltei para o Brasil, decidi continuar. Eu trabalhei muito tempo como arquiteta, no paralelo, mas aos poucos a pintura foi tomando conta da parte principal da minha vida. Desde 2010 passei a dividir um ateliê com um amigo artista e a partir daí não parei mais. Sempre gostei muito de pintura, sempre foi a área que mais me interessou. O caminho pela pintura aconteceu porque é uma construção de camadas de cores. Gosto de ver quando cor vira profundidade, vira luz.  

 

(Divulgação)

 

V: Qual é seu processo criativo? 

CA: Eu sou uma artista trabalhadora. Venho todos os dias para o ateliê, faça chuva ou faça sol, com vontade ou sem vontade. Fiz durante muito tempo os retratos, autorretratos que partiam de uma ideia de mim mesma. Eu me fantasiava, interpretava um personagem, pintava e desenvolvia um trabalho. Depois, comecei a chamar os amigos para posar, e mais para a frente comecei a apagar o rosto e deixar alguns elementos que criavam a ideia de que ali tinha um retrato. Eu passei a explorar a construção do rosto com massa de tinta, quase como um borrão que vai formando o rosto.  

 

V: Discorra sobre a obra da capa. 

CA: Acho que é o mais radical dos meus retratos. O rosto é quase aleatório. Tem alguns movimentos que conduzem a construção mental do rosto, mas pelas lógicas de sombra, ocres e azuis, vermelhos e brancos. Ela foi feita no começo de 2022, é super-recente, eu acho que ainda não secou completamente – é muita tinta, e demora.  

 

JANUS, 2019 (Divulgação)

 

V: Em qual fase considera estar agora? 

CA: Tive um câncer de mama; já está tudo bem, mas fiz a última cirurgia em maio deste ano. Eu estava trabalhando que nem louca nos últimos dois anos, mas, de lá para cá, dei uma empacada. Acontece isso. No momento, estou procurando outros caminhos, mas a pintura figurativa é o meu assunto principal. Busco sair um pouco do retrato, talvez um mundo mais afastado.  

 

V: Quais são seus processos de inspiração? 

CA: São alguns. Referências de outros pintores, livros de arte, busca na Internet, o que me ajuda muito. Eu estou procurando elementos cada vez mais próximos do meu cotidiano, o que vejo na rua, na minha família, coisas que tenham a ver com o dia a dia.  

 

(Divulgação)

 

V: Qual é o papel social da arte? 

CA: Não dá para viver sem arte, nenhuma delas. O ser humano precisa de algum lugar para escapar, olhar para outra coisa, e acho que todas as artes cabem nesse lugar: música, cinema, entretenimento, literatura. Como já disse Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida não basta”. Em uma exposição recente, mostrei pela primeira vez esses rostos da mesma série da obra de capa, e é muito gostosa a descoberta das pessoas, o que cada uma fala. Eu fico espionando o que estão comentando, e percebo a quantidade de conexões que cada uma faz e que leva para a própria vida.

 

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V: Arte para você é? 

CA: A arte é um trabalho, um processo de conexões, de criação, de beleza, de procura por soluções de problemas. Mas eu acho que é algo que tem a ver com a beleza, que não necessariamente é a clássica. É sobre descobrir um novo local, como se a gente estivesse num mundo em outra sintonia e tivesse de colocar aquilo em outro lugar. 

 

Por Giulianna Iodice | Matéria publicada na edição 127 da Versatille

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