O sal da nossa terra
O colunista Murillo de Aragão fala sobre como a democracia racial está distante em um país como o Brasil, que não valoriza completamente suas raízes culturais
O Brasil, em suas expressões culturais, tem na África sua matriz referencial. Temos o samba como ritmo nacional, o Carnaval como referência internacional e a feijoada como prato típico. São manifestações com fortes – se não predominantes – características africanas.
Temos uma porção quase majoritária de pardos em nossa população, e mesmo os que são “brancos” podem, eventualmente, encontrar fragmentos de DNA africano em sua formação. Eu mesmo tenho, na minha composição genética, traços que me conectam a Moçambique, ainda que seja considerado “branco” para efeitos estatísticos.
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Não há, salvo expressões pontuais, manifestações culturais brasileiras sem influências africanas. Tal evidência, porém, não é encarada como uma realidade em termos sociais. Somos uma sociedade racista, em que a desigualdade atinge mais os pardos e negros do que os brancos.
Como filho de paraibanos de classe média, também enfrentei certas dificuldades, pois existe preconceito contra nordestinos no país. Mas a minha branquitude facilitou um caminho de suor e luta. Caso fosse preto ou pardo, a trajetória teria sido muito mais dura, travada pelo preconceito, pelo abismo educacional e pela tendência à desigualdade que predomina em nosso país.
As pessoas só entendem de fato o que é racismo quando se tornam suas vítimas. No Brasil, nós, os “brancos”, praticamente não sabemos o que é se sentir discriminado. Até sermos preteridos ou discriminados no exterior por não sermos 100% Wasp (white, anglo-saxonic and protestant).
Lembro-me de um episódio da série Além da Imaginação (Twilight Zone) em que um personagem era preconceituoso com judeus, negros e asiáticos. Na fantasia da trama, o personagem vai se transformando, sucessivamente, em judeu, negro e asiático, até sofrer na pele o peso da discriminação.
Voltando ao Brasil, o sal da nossa terra é a cultura africana, violentamente transplantada para cá por conta da escravidão. Foi a vinda dos negros escravizados que inaugurou aqui a diversidade que até hoje não sabemos valorizar nem proteger como deveríamos.
Politicamente, os avanços são lentos. Na prática, a representação de pretos e pardos no Congresso Nacional é ínfima e não proporcional. O mesmo ocorre no Judiciário, com uma magistratura predominantemente branca. Índices de escolaridade, renda e ocupação também mostram o peso do preconceito que se esconde por trás de uma aparência cordial. Enfim, estamos longe de ser uma democracia racial.
Por Murillo de Aragão, advogado, jornalista, professor e cientista político