O que acontece quando dois chefs repletos de personalidade, Janaína Torres e Gaggan Annand, unem forças na cozinha

Os bastidores de um encontro que aconteceu em Bangkok, capital tailandesa, em dezembro de 2024

Os chefs Janaína Torres e Gaggan Annand

A distância entre São Paulo e Bangkok é de 16.386 quilômetros. Para chegar à capital tailandesa, são necessários, pelo menos, dois voos, independentemente de onde seja a sua parada. Uma das opções é fazer a rota via Europa, o que foi o meu caso. Bastou um voo de 11h30 até Paris, uma escala de quatro horas e mais um voo de 11h30 até chegar ao meu destino. O trajeto é longo, mas estava muito bem acompanhada: Janaína Torres, a mulher que me fez cruzar continentes, e jornalistas brasileiras que embarcaram na viagem motivadas pela chef mais brasileira que temos.

 

É engraçado pensar como o Brasil, país de dimensões continentais, pode ser transportado para bem longe, por meio das mãos, da mente e da habilidade de uma cozinheira, por meio de ingredientes que cabem numa mala e dizem tanto sobre nosso país. Janaína é uma profissional que, há anos, promove o Brasil por meio de sabores e se orgulha profundamente de suas origens.  É isso que a fez criar o seu atual projeto, A Brasileira, que, por enquanto, segue itinerante – mas, em breve, terá um ponto físico em São Paulo.

 

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Em 2024, foi eleita a Melhor Chef Mulher do Mundo pelo The World’s 50 Best Restaurants. Para receber o prêmio em mãos, Janaína foi até Las Vegas para a cerimônia, momento em que conheceu Gaggan Annand, o chef indiano que fez de Bangkok a sua cidade. Foi justamente nessa noite que, pessoalmente, o chef a convidou para cozinhar do outro lado do mundo. Convite aceito, jantar marcado para dezembro do mesmo ano. É aí que eu, mera coadjuvante, entro na história.

 

 

Sim, eu cruzei o mundo para comer. E o faria mais uma vez. Mas, mais do que isso, fui convidada a ser espectadora de um encontro inédito, entre Brasil, Tailândia e Índia. Logo de início, fui contaminada por toda a excentricidade do mítico Gaggan, que só havia visto pelas telas, no seriado Chef’s Table (na temporada 2, episódio 6). O que eu sabia era que saiu da Índia para quebrar um ciclo: a sua casta não permitiria que ascendesse, e ele, vendo essa realidade, precisou sair de lá, mirando em dar uma nova vida para si e sua família. Sabia, também, que a sua cozinha era definida como progressista e que jantar em seu restaurante era uma experiência e tanto, daquelas que ficam na cabeça, por até ser um pouco incômoda.

 

Já de Janaína, considero que sei um pouco, tanto pelos pratos que já provei e por tantas conversas que já tivemos, sejam elas para matérias (a chef foi capa da Versatille, edição número 134) ou off the record. Sei quanto aprecia uma cozinha descomplicada: fala orgulhosamente da panela de pressão, “demonizada” por tantos chefs. É generosa e faz uma cozinha generosa, em grandes panelas, para servir a quem estiver por lá. Revive e reinterpreta receitas para o Brasil contemporâneo, com o que ela acredita, trazendo à luz produtos, técnicas e até questões sociais. Defende o aproveitamento de tudo – tem como ser mais atual do que isso?

 

A chef Janaína

 

O encontro

 

O meu primeiro dia em Bangkok começou de forma inimaginável: um brunch na casa de Gaggan Annand, com a presença de uma legião de chefs proprietários de restaurantes estrelados, cada um cozinhando um prato diferente. Uma mesa farta traz pães, crudo de peixe, porco no forno, tostas, bolos e cookies. Frutas tailandesas terminam a refeição, como a manga, muito distinta da brasileira, e a longan, bem similar a uma lichia, só que ainda mais floral. Aquele foi o meu primeiro contato com os “sabores da Tailândia”, por mais que isso pareça uma frase pronta.

 

O chef Gaggan

 

Ali, foi quando notei a boa conexão entre os chefs que cozinhariam juntos, em questão de dias, desenvolvida de forma rápida e bem natural. Gaggan é um apaixonado por música, coleciona discos de vinil, que ficam dispostos em sua sala. Coloca a música bem alta, muda o disco, senta-se no sofá e volta para a cozinha. Faz isso repetidas vezes. Passar dez minutos o observando é virar a cabeça de um lado para o outro. Checa a todo momento se alguém precisa de algo. Um verdadeiro anfitrião, como a Janaína. Generoso, também.

 

Esse foi o primeiro contato de uma série deles, no decorrer dos dias. Uma ida ao mercado Or Tor Kor Market, para explorar a abundância de produtos frescos e comprar produtos para o jantar de Janaína e Gaggan, foi extremamente didático. Estar acompanhada por pessoas que conhecem os ingredientes locais, assim como falam tailandês/siamês, muda a experiência.

 

Janaína e Gaggan no mercado Cenas do Or Tor Kor Market De

 

Foi o momento certo para provar a duran, fruta conhecida por seu odor forte e desagradável; entender as diferenças entre os curries, que são vendidos prontos; ver uma infinidade de peixes e frutos do mar cozidos, dispostos em bandejas limpíssimas, que ficam fora da refrigeração, apesar do calor; aprender sobre os doces tailandeses, que muito se assemelham aos doces de ovos portugueses, uma herança do passado. Mas o que mais encanta são os alimentos frescos e até vivos. Aquários do famoso caranguejo azul, amplamente apreciado no país; camarões grandes; peixes que nadam, em espaços pequenos, à espera do fim. Também, graças à proximidade da China, há uma ala, em meio ao mercado, com frutas chinesas, vistosas, dispostas em cestas. Quando pergunto, logo me informam que se trata de presentes tradicionais para ocasiões especiais, como aniversários, nascimentos e noivados.

 

Duran

 

Como é de se imaginar, além das comidas experimentadas, saímos do mercado carregados de sacolas, grande parte com destino aos preparos do jantar a quatro mãos.

 

De todo canto do mundo

 

Nos restaurantes de Gaggan, tanto no homônimo como no Ms. Maria & Mr. Singh, onde aconteceu o jantar a quatro mãos, as equipes são compostas de diversas nacionalidades. A exemplo, seu head-chef, Fabio Costa, é português, mas são muitas origens distintas. Isso colabora e enriquece o ambiente, com noções de mundo diferentes. E foi justamente isso que Janaína levou para dentro da cozinha.

 

 

O restaurante mais casual de Gaggan tem um storytelling dos bons: é uma fusão entre México e Índia, contada numa história de amor de uma mulher mexicana e um homem indiano. Foi lá que Janaína serviu partes do Brasil com toques de outros países. A caipirinha de rambutão, o caldo de bife e tucupi, a nossa clássica coxinha (celebradíssima em seu Bar da Dona Onça). A barriga de porco frita e crocante, com goiabada cremosa, outro clássico da chef. Uma moqueca “roubada” por Gaggan, com um toque de temperos indianos. O porco viajante, acompanhado de manga e pomelo (ambas superasiáticas). E quem fechou a noite foi uma autêntica feijoada.

 

 

Até a música, algo tão valorizado pelo anfitrião, nesse dia, era samba, bossa-nova, MPB, axé e pagode. Nessa mistura de gente, de alegria e de sabores fortes e complementares, percebi que dois chefs podem se unir, mesmo que só por uma noite, e resultar num jantar inesquecível.

 

Por Giulianna Iodice | Matéria publicada na edição 138 da Versatille

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