Malcolm McDowell fala sobre os bastidores de Laranja Mecânica
O ator que deu vida ao protagonista Alex DeLarge revela curiosidades sobre o figurino, a maquiagem e o diretor do longa Stanley Kubrick
Laranja Mecânica é o filme obrigatório para aqueles que se consideram cinéfilos de verdade. Inspirado no romance futurista de Anthony Burgess, é uma das principais obras do diretor Stanley Kubrick, responsável por eternizar o ator Malcolm McDowell na pele de Alex DeLarge, o violento líder de gangue que passa por uma reabilitação de comportamento.
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Em sua estreia, em fevereiro de 1971, o filme chocou a indústria e o público geral pela temática violenta e a estética totalmente fora do comum. Por conter elementos políticos, chegou a ser censurado em alguns países como Espanha, África do Sul e outros do Leste Europeu, o que apenas colaborou para aumentar a curiosidade do público. Seu impacto é tão forte que serve como referência na cultura popular e ainda hoje é pauta de discussões sobre cinema, moda, comportamento e política.
Com tudo o que o filme representa, mesmo 50 anos após seu lançamento, uma curiosidade é maior do que todas: o que aconteceu por trás das câmeras? Com isso em mente, tive a oportunidade de conversar com o protagonista, Malcolm McDowell, por videoconferência realizada pela Hollywood Foreign Press Association. Diretamente de sua casa em Ojai, próximo a Santa Bárbara, na Califórnia, o ator iniciou a conversa falando sobre como o Brasil deve ser lindo. Confira a entrevista na íntegra.
Versatille: Com o passar das décadas, cinéfilos assistem a Laranja Mecânica com outros olhos. O que acredita que mudou na percepção do público?
Malcolm McDowell: No lançamento, tudo o que falavam era sobre a violência do filme, e, com isso, todo o trabalho de interpretação se perdeu no meio do barulho. Mas, no fim das contas, Burgess escreveu um romance brilhante e Stanley Kubrick o converteu para as telas de cinema de forma genial. E isso é raro, pois geralmente algo se perde nessas traduções de meios. O porquê de o filme sobreviver até hoje creio que é pela força da narrativa. A violência já não assusta como na época e as pessoas entendem melhor o humor e as implicações políticas.
V: Por que você acha que o filme chocou tanto o público?
MM: Quando o filme foi lançado, nunca haviam visto nem ouvido algo similar. Burgess criou uma linguagem diferente, que é espetacular, algo que por si só já era ousada em um filme. O visual é extraordinário. Se você for pensar, isso tudo é em apenas 20 minutos do filme, o resto é bastante convencional. O fato de hoje ainda ser relevante mostra muito sobre o impacto do filme.
V: Como o projeto foi apresentado para você?
MM: Kubrick um dia me chamou e disse: “Leia este livro e me ligue”. Eu estava em gravações e só comecei a ler quando voltei para casa naquela noite. Pensei: meu Deus, que linguagem estranha. Tinha de voltar para o glossário no fim do livro para tentar desvendar o texto. Achava que seria impossível filmar aquilo. O que ele vê nisso? Aí li pela segunda vez, já mais familiarizado, e entendi que se tratava de uma história incrível. Na terceira vez, pensei que o papel era maravilhoso. Então, liguei para Kubrick e perguntei, de cara, se ele estava me oferecendo o trabalho.
V: O personagem Alex DeLarge é icônico. Qual é sua teoria sobre essa identificação do público com alguém tão peculiar?
MM: Acho que as pessoas apreciam a atitude anarquista dele. E tem o lado de gostar de música clássica, de Beethoven. Foi muito estranho ver a reação do público. Poucas semanas após a estreia, eu estava dirigindo em Hammersmith e vi um grupo de garotos perto da estação de metrô vestidos como eu em Laranja Mecânica. Realmente me chocou, de uma forma boa – até porque é bom ser um hit. Muitos criticaram por incitar violência, como se fôssemos os únicos que fizeram isso no cinema. Amor, Sublime Amor não era sobre gangues? Eu sempre falei que, se esses garotos fantasiados fossem suspeitos de crimes, seria muito fácil para a polícia identificá-los, pois todos estariam de branco com o chapéu redondo (risos).
V: Por falar nisso, como foi a concepção do figurino de Alex DeLarge?
MM: É uma boa história. Antes de começarmos a rodar o filme, eu costumava ir à casa de Kubrick duas ou até três vezes por semana. A gente sempre pedia comida chinesa. Um dia, quando estava indo embora, ele caminhou até o estacionamento comigo e me perguntou: “Como você acha que ele (DeLarge) deveria se vestir?”, e respondi: “Não sei, Stanley. É algo futurista”. Então perguntou se eu tinha algo que poderia usar, e na época minhas únicas roupas eram jeans e camisetas. Mas, por acaso, estava com material de críquete no carro. Pediu para que eu vestisse, pegou uma peça e falou: “O que é isso?”. Eu expliquei: “É o protetor caso acertem você naquelas partes”(risos). Ele sugeriu usar do lado de fora da calça, e assim surgiu o visual de branco críquete.
V: E a maquiagem, como pensaram nela?
MM: Era para ser uma sacanagem com o diretor. Um dia, estava em uma loja chamada Bebas e vi, ao lado do caixa, 1 metro de cílios postiços. Achei que seria hilário aparecer com aquilo. Quando lhe dei o pacote, ele olhou e disse para eu colocar. E aí me fotografou com um olho, depois dois. Já ficava estranho só de colocar aquilo. No dia seguinte, ele me ligou e falou que estava vendo as fotos e notou que, ao olhar a que eu estava usando apenas um dos cílios, via algo estranho, mas não conseguia dizer exatamente o que era. O chapéu acabou sendo uma decisão óbvia, uma referência aos cavalheiros.
V: Qual foi a direção que recebeu sobre o personagem?
MM: Ele nunca falou muito sobre o personagem. Pressupôs que eu faria essa parte sozinho. Certa vez, perguntei o que achava de uma cena e ele se virou com um olhar incrédulo: “é para isso que contratei você”, e saiu da sala (risos). Isso me desanimou na hora, mas depois percebi que Kubrick havia me dado um grande presente. “Você cria e me mostra”, ele dizia. E foi isso que fiz.
V: Com toda essa troca que vocês tiveram, que memórias você guarda de sua relação?
MM: Anos após o filme, Kubrick e eu tivemos um desentendimento, aconteceram algumas coisas que não gostei também quando o filme estava sendo editado, o que não tira o prazer de ter participado dele, pois durante as filmagens foi uma experiência maravilhosa. Eu amava trabalhar com ele e o amava. Se você já assistiu ao filme, nota que de forma alguma teria conseguido aquele resultado se estivesse angustiado com ele. Nós nos demos muito bem, de verdade. E foi uma colaboração excelente porque ele confiava em mim.
V: Qual segredo você sabe de Kubrick que o público talvez não conheça?
MM: Ele usava samba-canção. Brincadeira, eu não sei o que ele usava. Ele não era conhecido por um bom senso de humor, mas, quando algo o pegava de jeito, não conseguia segurar o riso. Então tinha de colocar um lenço na boca para abafar o som, para não estragar o áudio do take.
V: O filme era tão atípico para a época. Existia alguma preocupação que talvez fosse ousado demais para vir a se tornar um sucesso comercial?
MM: Eu sabia que o longa iria muito além dos festivais de cinema. Não se esqueça, eu estava trabalhando com um mestre. Quando comecei Laranja Mecânica, Stanley Kubrick já havia feito Spartacus, Lolita e 2001 − Uma Odisseia no Espaço. Ele foi o diretor de maior sucesso trabalhando na época. Isso porque fazia filmes que eram provocantes, artísticos e ao mesmo tempo comerciais, o que nunca acontece. A única outra pessoa que consegue fazer isso é Spielberg. Kubrick era uma entidade. Ele era o produtor e meio que fazia o roteiro – todos nós dávamos alguns pitacos. Mas ele também era um técnico excelente, entendia tudo de câmeras, lentes, luzes, todos os elementos. Estava no comando de tudo e deixava a interpretação para os atores.
V: Não posso deixar de mencionar a trilha sonora, um show à parte…
MM: A música foi um grande elemento. Wendy Carlos, que na época era Walter Carlos, fez um trabalho realmente brilhante. A forma que colocou Beethoven no sintetizador era impressionante. E, claro, “Singing in the Rain”, a referência para a velha Hollywood, foi algo que saiu da minha boca instintivamente. Na cena só estava escrito que eu deveria dançar, então comecei a cantar para acompanhar. Na hora, Stanley pulou em seu carro e comprou os direitos da música.
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V: Você acha que Laranja Mecânica poderia ter um remake de sucesso?
MM: Fico até surpreso que ainda não tenham feito uma nova versão do filme. Mas preciso dizer que, por ser uma das grandes obras-primas de Stanley Kubrick, seria muito difícil para qualquer diretor levar o projeto adiante. Por outro lado, Spielberg acabou de fazer a sua versão de Amor, Sublime Amor e eu nunca imaginei que alguém teria coragem de refazer o clássico. Então pode ser estranho, mas não me surpreenderia.
Por Miriam Spritzer | Matéria publicada na edição 124 da Versatille