Haute Couture em taça

Na contramão dos vinhos produzidos em grande escala, os rótulos de autor se restringem a poucas e exclusivas garrafas. Premiadas aqui e lá fora, as jovens vinícolas Guaspari e Tormentas brilham nesse restrito e prestigiado

Na contramão dos vinhos produzidos em grande escala, os rótulos de autor se restringem a poucas e exclusivas garrafas. Premiadas aqui e lá fora, as jovens vinícolas Guaspari e Tormentas brilham nesse restrito e prestigiado universo

 

À imagem e semelhança de seu criador. Com DNA inconfundível e digital própria impressa em cada garrafa de uma produção minimalista limitada a alguns poucos exemplares, os vinhos de autor expressam o conceito vinícola de seu dono ou enólogo — ou seja, a personalidade daquele que o concebeu e o criou para ser sorvido na taça. Na contramão da produção em escala voltada ao grande público, tais rótulos, de estilo único e exclusivo, chegam ao mercado com a proposta de surpreender a percepção e, sobretudo, o paladar do consumidor. Se comparado ao mundo da moda, o primeiro seria o prêt-à-porter e o segundo, a haute couture (ou alta-costura, em bom português) dos fermentados de uva.

 

Sabe-se que um dos efeitos da globalização na vitivinicultura é o surgimento de um padrão comum de vinho, a chamada “estandardização”. São, no geral, rótulos ricos em álcool e madeira, concentrados, com sabores e aromas que buscam agradar ao gosto médio da maioria e atender às necessidades comerciais do produtor. A contrapartida disso é o crescimento de um grupo emergente e ultrarrestrito de produtores e de enólogos de raro talento que busca um caminho alternativo e fora da curva, por meio da elaboração de vinhos de produção limitada, artesanal, que refletem, efetivamente, o terroir e a expressão da região onde são produzidos e toda a mestria e sensibilidade por detrás de uma visão meramente técnica.

 

Da escolha do terroir, ao plantio, colheita e vinificação, o trabalho desses profissionais se assemelha ao de um artista que, com talento, dedicação e paixão incondicionais, acompanha, passo a passo, a evolução de sua obra, tomando decisões de acordo com seus ideais e convic- ções pessoais, não fazendo quaisquer concessões que o distanciem de seu sonho. Ademais, a elaboração de tais vinhos exige determinação extrema e trabalho incansável e minucioso de quem o produz. Nesse processo, portanto, inspiração e transpiração caminham juntas.

 

Aqueles que se propõem a produzi-los evitam, a todo custo, por exemplo, o uso de determinados produtos e mecanismos considerados “artificiais”. Por isso, as etapas se tornam mais demoradas e, por extensão, o tempo de produção, também. Tamanha dedicação resulta em verdadeiras preciosidades líquidas que podem consagrar a carreira de um enólogo ou levar, ainda, um determinado produtor ao “Olimpo” das taças. A isso, adicione-se o fato de a produção, limitada a umas poucas centenas de garrafas, inflar os preços e, com o passar dos anos, acirrar a disputa de tais rótulos por colecionadores.

 

Decerto, há consumidores dispostos a pagar mais ou, em alguns casos excepcionais, muito mais, por essa experiência única. É compreensível. Para o enófilo é a oportunidade de degustar exemplares de aromas, paladar e estilo exclusivos, com assinatura e DNA próprios. Certamente os vinhos de autor não são rótulos feitos para o dia a dia. Mas, por vezes, os preços podem não ser tão assustadores como parecem.

 

Nesse seleto universo de Baco, duas jovens vinícolas brasileiras têm se destacado: a paulista Guaspari e a gaúcha Tormentas, ambas fundadas há menos de uma década e papa-prêmios de merecido prestígio nacional e internacional. Situadas em dois pouco conhecidos e improváveis terroirs, a primeira fica abrigada a cerca de 200 km de São Paulo, em uma cenográfica fazenda de café centenária no município de Espírito Santo do Pinhal, que mais lembra a Toscana, com os atuais 50 hectares de vinhedos cultivados nas franjas da Serra da Mantiqueira. A segunda está sediada em Canela, simpática cidadezinha pespegada a Gramado, no coração da Serra Gaúcha, polo turístico famoso pela pródiga produção de chocolates e cervejas artesanais.

 

Ou seja, mesmo localizadas em regiões sem nenhuma tradição vinícola, tanto a Guaspari quanto a Tormentas com surpreendentes e instigantes vinhos de autor ostentam o mérito de ter inaugurado de forma pioneira e arrojada um novo e promissor capítulo no mundo dos rótulos de alta gama. A vinícola paulista, por exemplo, produz um Syrah que é elogiadíssimo por críticos independentes, seja dentro ou fora do país. Caso, por exemplo, do inglês Steven Spurrier, aquele mesmo que organizou o “Julgamento de Paris”, nos anos 1970, colocando no mapa mundial os vinhos californianos.

 

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Estudos preliminares realizados pelos proprietários, enófilos apaixonados de origem mineira com negó- cios na área de mineração, e cujo nome familiar batiza e controla a vinícola paulista, constataram que o solo pedregoso onde seriam cultivados os vinhedos de cepas tintas e brancas, todas francesas, se aproximava do encontrado na região do Rhône, sul da França, em que reina a syrah — touchée! Mas o mesmo, também, se pode dizer sobre o esplêndido Sauvignon Blanc Vista do Chá. Ou do seu recém-lançado Viogneir Vista do Bosque 2015, todos moldados sob a inconfundível égide e classe da escola vinícola francesa, e que tem no comando o diretor de Enologia, o enólogo americano Gustavo Gonzalez, com vasto currículo que inclui as vinícolas Robert Mondavi, da Califórnia, e a italiana Tenuta dell’Ornellaia, do emblemático supertoscano Sassicaia.

 

O homem-chave e “alma” da vinícola Tormentas é o próprio dono: o exfotógrafo publicitário Marco Danielle. Na verdade, Danielle é o alterego vinhateiro de Maurício Heller Dani — seu verdadeiro nome —, hoje uma das principais referências de rótulos de autor de alta qualidade no país. Os vinhos da Tormentas têm entusiastas de primeira hora — e não só no Brasil. Caso do próprio Spurrier, do francês Pierre Overnay (considerado o papa dos vinhos naturais) e do músico e enófilo Ed Motta, fã de carteirinha e divulgador espontâneo dos caldos de Danielle.

 

Na verdade, esse produtor gaúcho começou a fazer vinhos conceituais em 2002. Obtidos de forma natural, sem intervenções e uso de aditivos e corretivos químicos nos vinhedos e na adega, do primeiro, o Tormentas Premium Cabernet Sauvignon 2004, saíram apenas 141 garrafas. Estudioso, determinado e estrategista, passou a endereçar garrafas às pessoas certas — como o jornalista Steven Spurrier, hoje editor da influente revista Decanter, que as degustou e aprovou.

 

Inicialmente, na base do boca-a-boca, seus vinhos foram ganhando admiradores e multiplicando atenções dentro e fora do Brasil. Uma das pontes mais sólidas para isso foi o Fulvia Pinot Noir 2009, com a uva clássica e temperamental da Borgonha. Depois de prová-lo, o insuspeito jornalista Georges Bertet, membro da Associação de Sommeliers de Paris, avaliou:

“Um pinot noir de extrema delicadeza, uma mão de ferro em luva de veludo, podendo rivalizar com os melhores pinots noirs do mundo”. Uma deferência e tanto para um desconhecido porém promissor produtor brasileiro.

 

Os vinhos que levam a “assinatura” desse “fotógrafo por hobby, vinhateiro nas horas vagas e filósofo a maior parte do tempo”, como se autodefine Marco Danielle, só podem ser adquiridos sob encomenda pelo site da vinícola (tormentas.com.br). Com pedido mínimo de seis garrafas, também podem ser arrematados  en primeur, isto é, com bastante antecedência, já engarrafados, mas sem saber que rótulos receberão.

 

Adega por Marco Merguizzo | Matéria publicada na edição 96 da Revista Versatille

 

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