“Eu amo essa parte de criar a mesma excelência todos os anos”, diz Julie Cavil, chefe de cave da Krug, em entrevista exclusiva

Responsável por preservar a história de 180 anos da maison, Julie equilibra o seu olhar entre presente e futuro

Julie Cavil (Michael Ferire)

Assim como os champanhes que jorram de garrafas da Krug, Julie Cavil é singular e inspiradora. A atual chefe de cave da marca fundada em 1843 assumiu o posto em 2020, após 13 anos no processo de transmissão com seu antecessor, Éric Lebel. Em visita ao Brasil para a experiência Single Ingredient, que neste ano elegeu o limão, Julie concedeu entrevista exclusiva à Versatille, na qual discorreu sobre a história de sua carreira, que envolve uma transição profunda, da agência de publicidade para os vinhedos de Champagne, e também como concilia e garante com excelência que a maison Krug continue preservando sua herança, se atente aos desafios do presente e olhe para o futuro para perpetuar-se.  

 

Confira, na sequência, a conversa com Julie Cavil.  

 

LEIA MAIS:

 

Versatille: Qual é o motivo de sua visita ao Brasil?  

 

Julie Cavil: Estou aqui por conta do Single Ingredient. Escolhemos um único ingrediente a cada ano, e damos aos chefs à frente das Embaixadas Krug [restaurantes ao redor do mundo que são a continuação da maison] o desafio de se aprofundar num ingrediente e se expressar de uma forma legal e divertida, tendo em mente a filosofia da Krug. Em poucas palavras, a história da Maison Krug tem um homem por trás dela: Joseph Krug, que tinha como objetivo produzir o melhor sempre, para surpreender os clientes. Com isso, ele quis reunir a expressão mais completa de um champanhe numa garrafa e todos os anos continuar fazendo isso. Neste ano, o ingrediente é o limão, e viemos ao Brasil porque conhecemos produtores que cultivam variedades incríveis. O objetivo é inspirar os chefs, fazendo-os sentirem as variedades, porque, por trás apenas do limão, há tanta diversidade de tipos, sabores, intensidades. Eles conheceram, cozinharam, e, dessa forma, temos muitas histórias. No Brasil, é a primeira vez que acontece a experiência.  

 

V: De qual forma sua vida e a “das uvas” se juntaram? 

 

JC: Se você me falasse que há 20 anos eu iria morar na região de Champagne e que trabalharia com vinhos na Krug, não acreditaria em você. Eu nasci no centro da França, que não é famoso por vinhos espumantes. Aos 17 anos, eu escolhi o que teria que fazer para o resto da minha vida, então estudei numa escola de negócios, e depois fui trabalhar numa agência de publicidade, em Paris. Amei aquele período da minha vida, era superjovem, e, naquele tempo, passei a provar vinhos com amigos. A paixão pela bebida se instaurou, comecei a ler livros e, após conhecer meu marido, juntos, fizemos crescer nosso amor por este universo. Naquele período, o nosso projeto de vida era outro: sair de Paris, ter uma casa com jardim para as crianças, ter uma vida mais balanceada entre o trabalho e a vida pessoal. Eu não queria trabalhar com publicidade pelo resto da minha vida. Essa paixão, então, nos levou a pedir demissão de nossos trabalhos, quando tivemos a nossa primeira filha. Fomos para Champagne, porque não é apenas o vinho, é também famoso por produtos de luxo em geral, então, para o nosso histórico de trabalho, foi mais fácil. Pensamos, na época, em ficar apenas dois anos na região, mas agora já são 20. Eu estudei por quatro anos sobre vinhos, para ter o diploma, e naquele tempo eu aprendi muito na Dom Pérignon e Moët & Chandon. Eu me juntei a Krug em 2006, e foi quando conheci Éric Lebel, meu antecessor, e muito rápido, após um ano e meio, a gente entendeu que eu iria ser a sua sucessora na posição de chefe de cave, e, assim, começamos rapidamente a transição.  

 

Krug Grande Cuvée 171 Ême Édition (divulgação)

 

V: Como foi o processo de transição? 

 

JC: A cada edição de Krug Grande Cuvée, precisamos de pelo menos 24 anos para fazer apenas uma garrafa. A primeira coisa que você aprende, então, quando se junta à Krug, é a paciência, e foi por isso que a transição com  Eric foi supercalma e com muitos passos, foi realmente uma transmissão de conhecimento. Ele estava no palco, eu, nos bastidores, e ele me convidou para vir ao palco. Foi bem suave, com muito tempo, muita generosidade e com um time fantástico. Não foi uma mudança grande, foi apenas uma continuidade. Foram 13 anos até estar pronta para assumir, em 2020. E você sabe, a transmissão é um fator-chave na Krug, justamente por conta deste longo tempo de produção, e eu já comecei a transmitir conhecimentos para o meu sucessor.  

 

V: Qual foi seu maior desafio em todos esses anos na Krug? 

 

JC: Foram muitos. Algo que aprendi cada vez que as pessoas me questionam sobre eu não trazer a minha personalidade para o vinho é que isso seria o mais fácil. Simplesmente chegar a um lugar e mudar tudo. Ser capaz de criar a mesma excelência, ano após ano, com diversas circunstâncias enfrentadas na plantação e também na colheita, é muito mais difícil e empolgante. Eu amo essa parte de criar a mesma excelência todos os anos. O desafio é que eu tenho um trabalho, mas, provavelmente, três missões: eu preciso ter sempre um olho no passado, porque eu herdei do meu antecessor e de todas as gerações passadas da família Krug; eu tenho que proteger os fundamentos, tanto as heranças materiais como imateriais. Eu também tenho que prestar atenção ao presente, recriar todos os anos; e também tenho a missão de estar no futuro, para já transmitir para a nova geração. Eu estou na continuação do que já aprendi, mas preciso mudar para me adaptar às novas condições.  

 

(Jenny Zarins)

 

V: De que forma, então, concilia passado, presente e futuro? 

 

JC: Neste momento, estou trabalhando num novo lugar, que vamos inaugurar no fim de 2023, que oferecerá as melhores condições para o nascimento de nossos vinhos, para as pessoas que estão trabalhando e também para o meio ambiente. É um projeto grande. As novas facilidades são para os funcionários, e é uma oportunidade fantástica, de começar tudo de uma página em branco. Ele é batizado de Joseph 2.0, que é uma transferência da herança, mas que cabe dentro do presente e futuro. São cinco anos em construção, e estamos superempolgados. Outro aspecto fundamental é a transmissão de nosso terroir, e, por isso, me atento a tudo o que é relacionado à sustentabilidade. Eu desenvolvi um aplicativo que auxilia no processo de provas da Krug, então nós testamos tudo às cegas, usamos diversos níveis de expressão e elegância, marcamos as notas, e tenho uma ferramenta que me permite ver as palavras que foram usadas mais nesta temporada e, por exemplo, compará-las com dez anos atrás, e com isso percebo também a passagem do tempo e das mudanças climáticas.  

 

V: O que dá mais prazer a você em seu trabalho? 

 

JC: Provavelmente é a polivalência. Nós somos uma maison pequena e temos que estar em todos os lugares, desde as plantações em diversos países, para, por exemplo, conhecer apaixonados pela marca. Do que eu gosto mais é a diversidade do meu trabalho. Eu tenho uma coleção de sapatos para passar um dia: coloco botas para ir aos produtores e andar pelos vinhedos; depois, coloco saltos, para provas com jornalistas; e, na sequência, sapatos flat para ir a Paris e discutir orçamentos. Claro que são exemplos, mas é para materializar do que eu gosto mais. Outra coisa que aprecio é a relação com os mais de 100 produtores: se eu tivesse um rótulo gigante na garrafa, poria todos os seus nomes, porque temos relacionamentos incríveis. Alguns deles, trabalhamos há muitas gerações com a família, e nós somos superexigentes, então eles têm que compartilhar a paixão, a filosofia, o amor pelo terroir e por sua expressão. 

 

Por Giulianna Iodice | Matéria publicada na edição 131 da Versatille