“Escrevemos com um destino, e esse destino é o leitor”, diz Itamar Vieira Junior, autor de “Torto Arado”

Itamar Vieira Junior, premiado autor brasileiro, fala sobre as inspirações e os desafios que constroem as tramas de seus trabalhos

O autor brasileiro Itamar Vieira Junior (Foto: Renato Parada)

“Pacato, discreto e com profundo apreço pela literatura e pela arte”: é assim que Itamar Vieira Junior se descreve quando questionado sobre si próprio. O autor brasileiro de 43 anos vem conquistando o mundo com suas histórias potentes sobre o Nordeste do país e as pessoas que ali vivem. 

 

Motivado pela experiência adquirida ao trabalhar no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), Vieira conta histórias que estão ligadas diretamente ao campo. Torto Arado (2019), fenômeno que arrecadou prêmios por onde passou e que vai ganhar uma adaptação pela HBO Max, é o primeiro livro de uma trilogia baiana em construção. Salvar o Fogo, lançado pela editora Todavia em abril, se conecta com a primeira obra, mas abrange outras temáticas importantes da região. “O terceiro livro segue o percurso do rio. Vamos encontrar outras personagens na cidade, mas que têm uma relação muito profunda com o campo”, confessa o autor para a Versatille, em entrevista exclusiva.

 

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Com sua voz calma, Itamar continua a falar sobre suas motivações e conta como seu interesse pela escrita foi despertado: “Fiquei muito intrigado ao ler O Caso da Borboleta Atíria, de Lúcia Machado de Almeida, porque é uma história com personagens não convencionais, como a borboleta e o grilo. Eram animais que estavam a minha volta, mas jamais imaginei que pudesse existir uma história a partir deles”.

 

Confira, a seguir, trechos da conversa. 

 

Versatille: A relação familiar e com a terra são pontos-chave em suas histórias. De onde vem a inspiração para retratar essas ligações?

 

Itamar Vieira Junior: A memória do campo sempre fez parte da minha vida. Nasci na cidade, em Salvador, mas meu pais, avós e bisavós paternos vieram de lá. Com 25 anos, fui trabalhar no serviço público, no Incra. Fui por necessidade, mas me envolvi e descobri muita coisa sobre o país. Essa experiência, que já está comigo há 17 anos, despertou meu olhar para as questões sociais relevantes do campo. Nossa história, de alguma maneira, está cristalizada nesse ambiente, e toda história colonial e escravista do nosso país ainda está muito presente ali. Por isso o campo surge com tanta força.

 

V: Você retrata mulheres como protagonistas. Quem inspirou você?

 

IVJ: A primeira inspiração veio das mulheres da família, que me cercam desde a minha infância e me transmitiram valores e percepções muito particulares deste universo. Elas se colocaram como mulheres fortes na minha vida. Anos depois, trabalhando no campo, pude encontrar muitas mulheres que espelhavam essas da minha casa. Era um pouco paradoxal, pois, ao mesmo tempo em que elas eram atravessadas pela violência patriarcal, não se subordinavam, reagiam. Acredito que a carga desse conflito, dessa reação, talvez tenha se impregnado no meu imaginário. A centralidade dessas personagens fortes é fundamental para a narrativa da história.

 

V: Há alguma resistência ao tentar publicar livros com protagonistas não brancos?

 

IVJ: Sim, acredito que o ambiente esteja melhorando, mas ainda há. Já prevendo essa resistência, não enviei o original de Torto Arado diretamente para uma editora, preferi encaminhar para o Leya, prêmio literário de Portugal. O projeto foi submetido anonimamente, ninguém sabia quem escreveu a história. Achei essa uma forma mais justa e segura de ter o livro avaliado. Acredito que, naquele momento, sem a chancela de ter sido publicado fora do Brasil, esse livro talvez não estaria em uma editora que pudesse fazer a história circular no país. 

 

V: Como você se sente ao saber que sua história foi lançada no outro lado do mundo, no Japão? 

 

IVJ: Nunca imaginei que uma história tão particular, tão baiana, tivesse uma colheita boa pelos lugares em que tem passado. Os leitores reagem à narrativa mesmo não fazendo parte do contexto brasileiro. São histórias que têm elementos que dizem respeito a todos nós, seres humanos, que é o direito à terra, à vida e à liberdade, direito de não ter seu trabalho explorado. São temas que atravessam todas as culturas, e talvez isso conecte o leitor estrangeiro a essa história. 

 

V: Quando você publica um livro, o que espera que o leitor sinta?

 

IVJ: Eu não sei, não projeto uma reação do leitor. Talvez todos nós que escrevemos, no fundo, estejamos dando um registro de nossos tempos, dos valores e crenças próprias. Em um primeiro momento, desejamos que ele seja capaz de alcançar isso na narrativa. Escrevemos com um destino, e esse destino é o leitor, mas nunca sabemos a repercussão que isso vai ter no corpo dele; cada um vai se apropriar e se conectar, ou não, com essa história de uma maneira muito particular. 

 

V: Quais são os destaques de sua trajetória que você considera fundamentais para ter chegado aonde chegou? 

 

IVJ: Primeiro, eu imagino que estudar a literatura, de uma maneira autônoma e autodidática, já que não tenho formação na área. Sempre fui interessado, sempre fui muito atento às coisas que acontecem a minha volta. Tudo isso são elementos importantes para que a gente possa escrever. Saber escutar, ler criticamente o próprio trabalho e ter paciência com o tempo, tudo isso foi fundamental para que eu pudesse publicar no momento certo, sem pressa.

 

V: Qual conselho você daria a quem quer começar a escrever?

 

IVJ: Leia e escreva muito, sem se preocupar em publicar a princípio. 

 

Por Marcella Fonseca | Matéria publicada na edição 132 da Versatille

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