Como o cacau brasileiro se difere do resto do mundo

Considerado um alimento divino, o cacau continua valioso e possui um mercado premium em crescimento no Brasil

Entre os maias, o cacau era um verdadeiro presente dos deuses. Utilizado como moeda de troca, seu valor era tão alto que os estudiosos costumam compará-lo ao valor do ouro para nossa sociedade atual. Entre os europeus, o impacto não foi muito diferente. Basicamente, ter cacau era sinônimo de ter fortuna. A aura do sagrado era tão forte que o zoólogo e médico sueco Carl Lineu batizou o fruto com o nome científico Theobroma cacao L., visto que “theobroma” significa “alimento divino”, em grego. 

 

Hoje, não há bosques sagrados nem transações financeiras que utilizam diretamente as sementes de cacau, mas ainda assim o fruto representa grande lucro para um mercado consumidor mundialmente acelerado – principalmente quando o assunto é chocolate. De certa forma, o alimento continua despertando grande interesse e, infelizmente, ganância (mostrando que nem tudo é doce nessa indústria). 

 

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No episódio intitulado “Chocolate Amargo”, da série documental Rotten, da Netflix, algumas problemáticas do cultivo de cacau em países africanos como Costa do Marfim e Gana, que detêm cerca de 60% da produção mundial do fruto, são expostas. Com produtores em situação de pobreza extrema, o mercado acaba sendo recheado de ocorrências de exploração, trabalho infantil e até degradação ambiental, visto que muitos agricultores, movidos pela necessidade de produzir cada vez mais, invadem reservas ambientais para o plantio de árvores de cacau. 

 

A situação é complexa e provoca debates em uma geração cada vez mais preocupada com a origem da comida que chega a sua mesa. No Brasil, por exemplo, já há um movimento no mercado de chocolates premium que põe o impacto social e ambiental como um de seus principais pilares. O país não está livre de problemas, mas sua cacauicultura é diferente de qualquer outro lugar do mundo. 

 

TERROIR E PROPÓSITO

 

“O Brasil é um dos únicos países que é produtor de cacau e tem um mercado de chocolates relevante. Nos países africanos, eles produzem, mas não consomem. Já na Europa, há o consumo, mas sem a produção”, diz Estevan Sartoreli, cofundador da marca de chocolates Dengo. “Aqui, as condições de renda dos produtores ainda estão inferiores ao que gostaríamos, mas as marcas e os consumidores têm um papel-chave nessa conscientização. Dá para ser um modelo de negócio positivo que beneficia todos os pilares do mercado.” 

 

Ambiente de produção dos cacaus adquiridos pela Dengo (Divulgação)

 

Com produção anual estimada em 250 mil toneladas, o Brasil é hoje o sétimo maior cultivador de cacau do mundo, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os esforços dos últimos anos para emplacar um produto de qualidade também acabaram gerando reconhecimento internacional. Em 2019, o país foi certificado pela Organização Internacional do Cacau (Icco) como exportador de cacau fino e de aroma – um mercado de nicho que representa menos de 5% do total comercializado entre os países, mas que possui um preço elevado, podendo custar até três vezes mais do que o cacau comum. 

 

“Um dos cacaus que compramos atualmente custa cinco vezes o preço da commodity. É uma matéria-prima fina e precisa ser valorizada”, explica Luisa Abram, dona da marca de chocolates que leva seu nome. Mergulhada na cacauicultura desde 2014, quando começou a fazer chocolates em casa, a empreendedora ainda ressalta a importância da valorização do produtor no processo de comercialização de um alimento de qualidade. 

 

Cacau selvagem utilizado por Luisa Abram (Divulgação)

 

“Adquirimos nosso cacau por meio do extrativismo sustentável e do cacau selvagem na floresta amazônica. Pagamos diretamente aos produtores e, para eles, isso vale muito. Ter uma opção que não desmate, mas gere renda e vida digna, é muito importante”, destaca. “Tendo uma boa colheita, com o mínimo de manejo. Eles colhem um produto que não tem perecibilidade e conseguem vender vários quilos de uma vez.” 

 

Na Dengo, há o mesmo propósito de valorização e incentivo para pequenos e médios produtores. “Pagamos de 70% a 245% acima do preço do mercado de cacau como commodity. Esse é o principal mecanismo de transferência de riqueza que gera impacto e permite a progressão da renda desses produtores”, explica Sartoreli. “Ainda estamos apurando os resultados de 2022, mas sabemos que nos últimos dois anos nós evoluímos, em média, 33% a renda familiar desses produtores parceiros.”

 

Segundo o cofundador, a marca foi pensada e criada, em 2017, para gerar impacto social e oferecer um alimento de qualidade para o público consumidor. “Hoje, temos cerca de 200 produtores conectados e 150 deles fornecem cacau regularmente sob o sistema agroflorestal cabruca, quando o fruto é cultivado debaixo das árvores da mata atlântica, de forma a preservar a floresta. Nosso maior núcleo está na Bahia, mas também estamos avançando no Pará”, conta. “Visitamos todas essas fazendas, oferecemos assessoria técnica e confirmamos as condições de trabalho e moradia de cada local. Temos valores inegociáveis de preservação da natureza e da dignidade humana.”

 

Em sua visão, os negócios de impacto são essenciais para que o setor melhore em conjunto, mas também é preciso educar os consumidores – um dos grandes desafios atuais. “Se uma barra de chocolate importada chegou com um valor muito baixo nas gôndolas do mercado, qual eixo da produção você acha que deixou de lucrar? O que aconteceu nessa cadeia? É preciso gerar essa reflexão”, ressalta Luisa. 

 

CHOCÓLATRAS DE PLANTÃO

 

Chocolates da Luisa Abram (Divulgação)

 

O Brasil é o quinto maior consumidor de chocolate do mundo, de acordo com os dados da Associação Brasileira de Indústrias de Chocolates, Amendoins e Balas (Abicab). Quase uma mania nacional, o alimento é o grande favorito quando se trata de sobremesas. Mas será que o consumidor está disposto a avaliar a origem e a qualidade do produto que está comprando? 

 

Essa foi uma das primeiras dúvidas que Sartoreli teve na hora de pôr o projeto da Dengo em prática. No entanto, ele logo pensou em uma solução simples: o chocolate precisava ser gostoso. “Independentemente da proposta, o sabor tem que conquistar. É a partir disso que conseguimos chamar a atenção do consumidor e abrir diálogo sobre a realidade do produtor de cacau no mundo e até sobre a formulação negativa que diversas marcas oferecem. Muitos se chocam ao perceber que estavam consumindo açúcar, e não cacau”, diz o empresário. 

 

Segundo um estudo divulgado em 2022 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), os brasileiros consomem 50% a mais de açúcar do que o recomendado. “O açúcar é barato, então é interessante para o mercado essa preferência do consumidor. Não é saudável, mas gera lucro”, explica. “Já o cacau é um superalimento. Ele é saudável se não adicionarmos aromatizantes, gordura hidrogenada e químicos desnecessários. Ainda somos prematuros no consumo de chocolates amargos e bean to bar, mas já vejo um movimento de busca por mais qualidade.” 

 

Para a chocolatier Mirian Rocha, que assistiu de camarote o avanço dos chocolates premium no Brasil, esse pequeno atraso na valorização de produtos mais sofisticados é uma característica nacional. “A vassoura-de-bruxa, uma doença que dizimou as plantações de cacau da Bahia no fim dos anos 1980, também contribuiu para desacelerar o mercado. Tirando isso, mesmo com vinhos e queijos, o apreço pela degustação gastronômica é recente para os brasileiros. Quando juntamos isso com a falta de comunicação e o entrosamento com o mercado internacional, entendemos a demora para conquistarmos reconhecimento dentro e fora do país.” 

 

Mesmo assim, a especialista acredita que o Brasil tem nas mãos o fator mais importante: o cacau, um fruto com mais de 2.400 espécies que apresenta sabores e aromas frutados, florais ou amadeirados, de acordo com a riqueza de cada terroir. O empreendedor português Jose Secco, por exemplo, decidiu fazer da Amazônia o local de origem da marca de chocolates orgânicos Warabu, que tem ganho destaque internacional. “A Amazônia tem um DNA específico, gerado por questões como clima, topografia, cultura e história, e isso impacta a qualidade da matéria-prima. Além do sabor marcante, a cor, o brilho, a textura e o odor são diferentes”, conta ele. 

 

Imagem do cacau selvagem utilizado por Luisa Abram (Divulgação)

 

Mais do que a riqueza amazônica, o Brasil ainda possui a extensa produção da Bahia, que foi capaz de gerar, por exemplo, o cacau catongo, uma espécie de cacau albino que foi fruto de uma mutação genética espontânea em solo baiano. “Ele é mais claro. Mesmo em grandes concentrações, ainda tem a aparência de um chocolate ao leite. Quanto ao sabor, é levemente ácido, com toques de frutas vermelhas e um retrogosto amendoado”, exemplifica Pedro Magalhães, dono da Var Chocolates, marca de chocolate catongo do sul da Bahia. 

 

Exclusivamente nacionais, esses exemplos apenas ressaltam a força da biodiversidade do Brasil e o potencial de crescimento do mercado. “O mundo está começando a provar e se apaixonar pelos nossos chocolates”, conclui Mirian, torcendo para que os brasileiros façam o mesmo. 

 

por Beatriz Calais | Matéria publicada na edição 130 da Versatille

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