Cem anos de Lygia Clark, uma artista que não teve medo de mudar

Em seu centenário de nascimento, a artista mineira ganhou mostras que refletem diferentes momentos de sua produção instigante

A grande retrospectiva da artista mineira Lygia Clark (1920-1988) promovida pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), em 2014, despertou bastante o interesse internacional por sua obra, gerando o desenvolvimento de pesquisas e a aparição em importantes publicações pedagógicas e institucionais. Agora, uma nova onda de curiosidade recai sobre ela. É que, em 2020, comemora-se o centenário do nascimento daquela que se dizia uma “não artista” e ganhou notoriedade primeiro ao romper com o conceito de moldura, extrapolando o espaço da pintura, depois ao buscar a participação do espectador em seus trabalhos, e, por fim, ao deixar de lado o caráter estético para enfatizar uma função terapêutica da arte com o outro.

 

Diferentes mostras contemplam a data, a começar por Lygia Clark. Pintura como Campo Experimental (1948-1958), aberta em 6 de março no Guggenheim Bilbao, na Espanha. Com curadoria de Geaninne Gutiérrez-Guimarães, a exposição concentra-se em uma etapa em que a artista experimentou figuração e abstração para articular a linguagem que definiria a produção futura. Primeiros desenhos, pouco exibidos, juntam-se a pinturas de séries daquele período.

 

 

A primeira década da carreira de Lygia – que teve aprendizado artístico com, por exemplo, Roberto Burle Marx (1909-1994) e Fernand Léger (1881- 1955) – está estruturada em três seções históricas: Primeiros Anos, 1948-1952; Abstração Geométrica, 1953-1956; e Variação de Forma: Espaço Modulador, 1957-1958. Detalhe: o evento, que termina em 24 de maio, será também apresentado na Coleção Peggy Guggenheim, em Veneza, na Itália.

 

(Nota da editora: a exposição foi inaugurada em 6 de março e permaneceu aberta à visitação até o dia 14 do mesmo mês, quando o museu Guggenheim Bilbao foi fechado devido à pandemia do coronavírus. Até a publicação desta matéria, não há data prevista de reabertura. As obras podem ser vistas no site do museu.)

 

No Brasil, há outras iniciativas à vista, como o monólogo Lygia, projeto idealizado pela atriz Carolyna Aguiar, com roteiro de Maria Clara Mattos e direção de Bel Kutner. No espetáculo, a atriz interage com réplicas de obras da artista e revela os pensamentos dela encontrados em seus diários, em que Lygia aborda cada produção e reflete sobre vida e arte, entre outros assuntos.

 

 

Aqueles trabalhos integraram a exposição Respire Comigo. Lygia Clark, organizada pela designer Alessandra Clark, neta da artista, com apoio curatorial de Felipe Scovino. A mostra esteve em cartaz no fim do ano passado no Studio OM.art, espaço no Rio de Janeiro idealizado pelo artista e estilista Oskar Metsavaht, que criou um selo comemorativo do centenário. O público pôde se relacionar, por exemplo, com a série Bichos, de 1960, composta de criaturas feitas de placas de metal unidas por dobradiças que permitem gerar diversas formas, de acordo com a vontade de quem as manuseia. Em julho, estão programadas no local outras iniciativas relacionadas ao universo de Lygia. É o caso da instalação A Casa É o Corpo, de 1968. Ela permite a passagem de pessoas por seu interior e, fase a fase, apresenta desde a fecundação de um óvulo até o nascimento de um indivíduo. Segundo Scovino, trata-se de uma obra-síntese do trabalho da artista. Além disso, haverá a montagem de proposições como Canibalismo e Baba Antropofágica, ambas de 1973, em que efetivamente a arte é o corpo.

 

 

“Quanto à mostra Respire Comigo e ao monólogo, foi muito importante revelar os diários originais de Lygia para as pessoas terem noção da forma como ela conduzia o dia a dia de seus questionamentos”, comenta Alessandra, carioca de 43 anos. Ela tinha 12 anos quando a artista morreu e se lembra de como a avó a recebia com balas Sugus, além de pastilhas de hortelã, e de quando tomavam suco de laranja no restaurante embaixo da casa dela. “Quando se cansava da energia infantil, ela me colocava em seu ‘colchão de estruturação do self’ e eu adormecia”, diz, referindo-se a uma das obras da artista.

 

Alessandra é filha de Álvaro Clark, , um dos três filhos que a artista teve com Aluísio Clark Ribeiro. Os outros são Eduardo e Elisabeth. “Lygia Clark resolveu em determinado momento, quando eu tinha 15 anos, que os problemas externos não podiam mexer com sua criatividade. Então, nós, os filhos, fomos ‘deportados’ do Rio para Belo Horizonte para os pais dela cuidarem da gente”, lembra-se, com bom humor, Álvaro, empresário carioca de 75 anos.

 

Ele destaca três obras fundamentais na carreira da mãe. Em Unidades, de 1959, moldura e espaço pictórico se confundem, um invadindo o outro, quando Lygia pinta a moldura com a cor da tela. “Outra é Bichos, exemplo de objetos com vida”, diz. Com essa série, a artista tornou-se uma das pioneiras na arte participativa mundial. Já a proposição Caminhando, de 1964, recorte em uma fita de Moebius praticado pelo participante, prenuncia a exploração sensorial que viria a seguir. “Lygia, que era uma artista neoconcreta consagrada, passou a lidar com o corpo do outro em um caminho terapêutico, e nunca mais voltou a recriar o que já tinha dado certo”, recorda o filho.

 

Alessandra lembra que a artista não teve medo de mudar, “mesmo quando o mercado gostava do que estava vendo”. Para a neta, ela tinha certeza da importância do que deixava e escreveu muito, “pois sabia que um dia as pessoas se interessariam pelo que produzira”. Há mesmo sempre muito o que estudar e refletir sobre o legado de Lygia Clark.

 

Por Roberto Abolafio Junior | Matéria publicada na edição 115 da revista Versatille

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