“A biodiversidade brasileira é um patrimônio. Precisamos reconhecê-la como tal”, diz Raquel Machado, presidente do Instituto Libio

O projeto, que atua em diversas frentes ecológicas, acolhe atualmente cerca de 130 animais silvestres vítimas do tráfico

Raquel Machado, presidente do Instituto Libio (Foto: Divulgação)

Nos primeiros passos da caminhada pelo mantenedor do Instituto Libio, em Porto Feliz, interior de São Paulo, é possível dar de cara com a Vovó Elza, uma fêmea de macaco-prego que passou 40 anos acorrentada após ser vítima do tráfico de animais silvestres. Hoje, aos 42 anos, ela brinca e se relaciona muito bem com seus companheiros de recinto: Chiquinha e dois filhotes que foram recebidos pelo Instituto recentemente. Com marcas das correntes no corpo, ela já está muito acostumada com o contato humano e não consegue mais viver sozinha na natureza, por isso foi acolhida pelo Instituto.  

 

Em outro recinto próximo, estão algumas araras, incluindo Dodó, uma arara vermelha que teve sequelas permanentes por conta do tráfico. Em uma prática infelizmente comum nesse mercado paralelo, ela teve os seus olhos queimados com cigarro para que ficasse menos agitada durante deslocamentos. Assim como outras aves que tiveram suas asas maltratadas para que não voassem mais, Dodó também não pode voltar para a natureza.  

 

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Por mais que não seja fácil falar sobre essas histórias, é importante que as pessoas saibam o impacto desse tráfico na vida de milhões de animais. De acordo com a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), o comércio ilegal de animais — que já é considerado a terceira maior atividade ilícita do mundo — movimenta US$ 2 bilhões por ano, no BrasiL, e US$ 23 bilhões ao redor do mundo. O órgão também indica que, anualmente, 38 milhões de animais silvestres são retirados ilegalmente das florestas brasileiras.  

 

Foto: Divulgação

 

Segundo Raquel Machado, presidente do Instituto Libio, estima-se que nove a cada dez animais traficados acabam morrendo no processo. Os que sobrevivem geralmente ficam com sequelas, assim como Vovó Elza e Dodó. Mais do que uma ameaça à vida desses animais, o tráfico ainda aumenta o risco de zoonoses, que representa até 75% das doenças infecciosas emergentes. De forma simplificada: o tráfico desregula o ecossistema e ataca diretamente o meio-ambiente.

 

Por mais que seus impactos sejam graves, ainda se fala pouco sobre o assunto. Nas redes sociais, por exemplo, há muitos vídeos de animais silvestres sendo tratados como animais de estimação, o que acaba impulsionando o tráfico. “Animal silvestre não é pet. Recebemos muitas mensagens de pessoas que compram animais como macacos e depois percebem que eles dão muito trabalho e não querem mais. Claro, eles não nasceram para viver dentro de casas”, destaca Raquel durante a visita da Versatille ao mantenedor de Porto Feliz. “Por isso a educação ambiental é tão importante. Enquanto não mudarmos a consciência das pessoas, estaremos enxugando gelo.” 

 

Foto: Divulgação

 

Se há demanda para a compra desses animais, o tráfico continua. Foi pensando nisso que o Instituto, além de acolher e tentar reabilitar diversas espécies, começou a desenvolver ações de educação ambiental por meio da sensibilização da sociedade. Em parceria com escolas municipais, eles já receberam a visita de algumas turmas de crianças com cerca de 13 anos. As intervenções são realizadas dentro e fora da sala de aula, com visitas técnicas para que eles conheçam a realidade do mantedenor. Desde 2022, o espaço já recebeu 23 visitas guiadas, o que é feito com muito cuidado para não gerar estresse aos animais. Alguns estão em treinamento para soltura na natureza, então o processo precisa ser feito com muita cautela.  

 

O Canelinha, por exemplo, é um lobo-guará que ficou um ano inteiro sendo reabilitado pela equipe do Instituto. Vítima de um incêndio, ele foi colocado em um recinto grande e não teve tanto contato com os humanos. Nos últimos meses, precisou aprender a caçar para se alimentar. “Dessa parte eu não participo porque tenho dó, mas é importante para eles. Colocamos presas vivas no recinto e o Canelinha precisa perceber que há um outro animal com ele no espaço e caçar. Essa é apenas uma das preparações que fazemos”, explica Raquel.  

 

Canelinha (Foto: Gustavo Figueirôa)

 

Na visita, foi possível avistar o recinto de Canelinha, mas sem muito proximidade e com pouco barulho. Afinal, sua soltura está marcada para o dia 27 de abril. Aurora, uma filhote de tamanduá-bandeira que havia sobrevivido a um atropelamento na região de Bonito, no Mato Grosso do Sul, também ilustra um dos casos mais recentes de animais voltando ao seu habitat natural após a reabilitação. Nesses casos, eles são soltos com uma coleira de monitoramento, o que ajuda os biólogos a acompanharem se eles estão conseguindo sobreviver sozinhos.  

 

É um processo complexo, embora conte com o apoio de outros projetos, como o Instituto Tamanduá e o Instituto Pró-Carnívoros. Para dar conta da estrutura, o Instituto também não fica restrito à região de Porto Feliz, atuando na preservação de pelo menos cinco áreas de interesse ecológico. “Quando entrei nesse universo, fui me aprofundando cada vez mais. Não fazia ideia que chegaria em algo desse tamanho”, diz Raquel.  

 

COMO TUDO COMEÇOU  

 

Para fins informativos, é importante saber como o Instituto, que hoje integra um dos maiores projetos de conservação privados do país, nasceu. Raquel Machado é médica dermatologista e seu único contato com a natureza tinha sido de forma espontânea: na infância regada a passeios de bicicleta que viveu em Minas Gerais ou em viagens de final de semana. Após o nascimento da sua primeira filha, em 2006, ela começou a sentir falta de um ambiente mais calmo e, ao lado de seu marido, decidiu visitar sítios em cidades próximas à capital.  

 

Foi a partir da indicação de uma de suas pacientes que ela ouviu falar sobre Porto Feliz e encontrou o terreno que hoje acolhe o mantenedor do Instituto. Espaçoso e com vista para o Rio Tietê — já despoluído na região —, o local parecia ideal para a paz que ela buscava. O que Raquel não esperava era encontrar um papagaio preso no sítio. Deixado para trás pelo antigo dono, o animal começou a gerar preocupação na dermatologista, que sempre se incomodou com pássaros presos.  

 

Ela queria que ele voltasse para a natureza, mas em contato com o Ibama descobriu que isso não seria possível. O animal provavelmente não saberia como sobreviver em seu habitat. Para abrigá-lo com mais conforto, Raquel construiu um novo espaço para o papagaio viver. A partir disso, começou a aumentar esse espaço e receber mais papagaios resgatados. Em 2010, já imersa na questão ecológica e ativa no acolhimento de vítimas do tráfico, ela oficializou a criação do Mantenedor Raquel Machado.  

 

“Fui aprendendo aos poucos sobre a questão ecológica. Como estava muito ligada aos animais, comecei a visitar locais e perceber o impacto do desmatamento e da falta de respeito com os nossos rios”, conta. Em 2016, começou a se dedicar à preservação de áreas verdes por meio da criação e administração de Reservas Privadas, como a Reserva do Rio Azul, no sul da Amazônia. Neste pilar, a equipe desenvolve o ecoturismo, a pesquisa científica e a conservação da biodiversidade como um todo, para que o ecossistema esteja sempre em harmonia.  

 

Reserva do Rio Azul (Foto: Divulgação)

 

Em 2020, após mais de 10 anos de atuação, Raquel decidiu mudar o nome do projeto para Instituto Libio. “O mantenedor levava o meu nome, mas o projeto cresceu muito e ultrapassou barreiras. É muito maior e eu não queria que ficasse ligado ao meu nome. Por isso decidi batizá-lo de Libio, em homenagem ao meu avô, que desde a década de 1940 falava sobre a importância da conservação da Amazônia.”  

 

Hoje, o projeto atua em 4 biomas, 7 refúgios e acolhe cerca de 130 animais apenas no mantenedor de Porto Feliz. Ao longo de todos esses anos, o Instituto se manteve apenas com o trabalho de Raquel como médica. Com a rotina dividida em duas, ela ainda atende em sua clínica em São Paulo e usa esse espaço para custear o projeto e divulgar o trabalho. “Como médica, percebi que as pessoas não sabem o que está acontecendo com o nosso país. Falamos pouco sobre essa questão, mas a biodiversidade é um patrimônio nosso. Precisamos reconhecê-la como tal”, conclui.  

 

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Nota da repórter: Para quem se interessou pelo projeto, o site oficial possui mais detalhes sobre os próximos passos do Instituto e os caminhos para ajudá-lo: https://institutolibio.org.br/ 

 

Por Beatriz Calais

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