Luciana Sagioro e Luciana Lemes: duas brasileiras, duas histórias que se encontram na França
As brasileiras deixaram o país para seguir carreira nas artes na França. Se no Brasil suas profissões no balé e na música têm pouco incentivo, no país europeu elas se aprimoraram e ascenderam

A França é um país de riquíssima tradição artística, da pintura ao cinema, passando por arquitetura, literatura e música. De lá saíram grandes nomes como Claude Monet, Jean-Luc Godard, Édith Piaf, Henri Matisse, Marcel Proust, Paul Cézanne, para citar apenas alguns. Por isso, é o destino sonhado por brasileiros e brasileiras que dedicam suas vidas às artes clássicas – entre eles duas Lucianas que, além do nome, têm em comum o fato de serem muito jovens e terem deixado o Brasil para exercer seus ofícios na França.
Em nosso país, a bailarina clássica Luciana Sagioro, promessa do balé desde a infância, percebia a desvalorização da modalidade, com teatros vazios e colegas sem salário; e Luciana Lemes, especialista em restauração de órgãos, experienciou falta de recursos e de mão de obra para a manutenção de instrumentos raros no país.
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Somam as coincidências, ainda, os planos de voltar para casa para ensinar as técnicas que aprimoraram pelo mundo, assim como abrir caminhos para os jovens brasileiros que desejam seguir carreira nas artes clássicas, apesar da ausência de recursos.

Luciana Lemes
Na Île de la Cité
A primeira vez que Luciana Lemes ficou frente a frente com um órgão, aos 11 anos, achou o instrumento feio e o som desagradável. Àquela altura, a menina preferia o piano. Mas se interessou por aquela peça gigante, cheia de tubos, a partir das explicações que ouviu do professor de música da igreja que a família frequentava, no interior de São Paulo: tratava-se de um instrumento histórico, muito raro, e que precisava ser restaurado com cuidado. Ela aceitou a missão de ajudá-lo, começou a aprender a manusear o órgão e logo estava dando aulas para crianças menores.
Só alguns anos mais tarde, quando conseguiu um emprego de organista no Santuário Nacional de Aparecida e se deparou com um órgão afinado e em perfeitas condições, entendeu que aquele instrumento antigo da igreja em sua cidade natal, Lorena, no interior de São Paulo, estava totalmente desafinado – por isso era desagradável aos ouvidos.

Luciana Lemes trabalhando na restauração do órgão da Catedral de Notre Dame
Naquele momento, ainda menina, não imaginava que seu primeiro encontro com o órgão era o começo de uma jornada que trilharia de Lorena até Paris, berço da organaria, e até a restauração de um dos instrumentos mais importantes do mundo: o órgão da Catedral de Notre Dame, prejudicado no incêndio que atingiu o local em 2019.
O interesse que começou nas aulas da igreja que a família frequentava levou Luciana à faculdade de música e às pesquisas sobre organaria: em seu trabalho de conclusão de curso, ela pesquisou a obra do construtor Aristide Cavaillé-Coll (1811-1899), responsável pelo órgão que conheceu em Lorena e, por coincidência, pelo órgão da Catedral de Notre Dame. Nesse processo, conheceu uma pesquisadora estadunidense que a levou para um estágio de dois anos nos Estados Unidos, onde aprimorou suas habilidades como organista (quem toca o instrumento) e organeira (quem restaura, afina e conserta o instrumento). Ao fim do estágio, foi contratada por uma empresa de reparação de instrumentos em Paris – uma das três empresas responsáveis pela restauração do órgão de Notre Dame.
O instrumento de 8 mil tubos – os maiores chegam a medir 12 metros de altura – não ficou queimado nem quebrado na tragédia, mas teve todo o seu interior contaminado por uma poeira tóxica de chumbo. Por essa razão, foi desmontado, e suas peças foram distribuídas para limpeza e restauro entre três empresas. A de Luciana ficou responsável especialmente pela limpeza dos tubos. Foi a primeira vez que o instrumento foi restaurado desde sua instalação na catedral, no século 19.
Luciana chegou à França em 2021 e lembra de ver colegas de trabalho carregando partes do instrumento usando roupas “de astronauta”, em razão da poeira tóxica. Naquele momento, ela não integrava a equipe responsável pelos cuidados com o órgão de Notre Dame, mas dois anos depois recebeu um e-mail avisando que ela e outras duas pessoas formariam a equipe de restauração da fachada. “Essa fachada nunca tinha sido restaurada desde sua instalação, no século 19. Então foi uma notícia muito especial, fiquei muito contente.” No ano seguinte, outra surpresa: Luciana integraria uma nova equipe, essa com cinco pessoas, que seria responsável pela afinação do instrumento antes da reinauguração da Catedral de Notre Dame. Ela era a única mulher nesse grupo, que faria os últimos ajustes finos de som, “a cereja do bolo”, nas palavras dela.
“Quem trabalha com afinação de instrumentos precisa de silêncio total, mas nós precisamos afinar o órgão no meio das obras, nos revezando em turnos de dia e noite. Era barulho de britadeira, caminhão dando ré, pessoas entrando e saindo, montando e desmontando andaimes, além dos equipamentos de proteção pessoal, como capacete. Tudo isso atrapalhava a nossa audição”, lembra.

Luciana Lemes
O trabalho de afinação durou dois meses, sem pausa, e terminou na véspera da reabertura da Catedral, em 7 de dezembro de 2024. Quando viu o instrumento funcionando em meio à orquestra de Notre Dame, se emocionou: “Tinha minha mão ali, eu ajudei. Os organistas estavam muito emocionados, porque não tocavam o órgão há cinco anos, desde o incêndio, foi lindo”, disse.
Luciana Lemes foi a única brasileira a trabalhar na restauração do órgão de Notre Dame. A única mulher em todas as equipes que integrou. À Versatille, ela conta que a profissão é muito, mas muito masculina, e diz que já ouviu histórias duras de assédio contra as poucas mulheres organistas e organeiras. “É um trabalho braçal, que requer condicionamento físico, e não esperam que as mulheres consigam realizar tão bem quanto os homens. Há um preconceito muito grande.” Ela mesma já foi recusada em uma vaga de emprego na Polônia por ser mulher – ouviu isso abertamente dos contratantes. “Enviei meu currículo, fiz uma entrevista e mais tarde recebi a resposta que os diretores daquela empresa decidiram não me contratar porque não queriam uma mulher. Eu esperava não ser contratada porque não poderiam cobrir meu salário, porque não se interessaram pelo currículo, mas nunca porque eu sou mulher. Fiquei muito mal, cheguei a ficar deprimida, e pensei em renunciar à carreira.”
Agora, aos 29 anos, mesmo casada com um organeiro e mãe de um bebê, Luciana pensa em voltar ao Brasil para terminar o processo de restauração do órgão da igreja em Lorena e ensinar por aqui o que aprendeu nos Estados Unidos e na França.
“O órgão é um instrumento incrível – não só musicalmente, mas mecanicamente. É uma peça com 8 mil tubos, e uma pessoa sozinha pode operar todos eles, usando as mãos e os pés. Esses instrumentos são um verdadeiro tesouro, é muito difícil cuidar deles no Brasil, sem mão de obra qualificada. Tem órgãos centenários sendo jogados fora por falta de interesse e de conhecimento para fazer a manutenção correta. É minha obrigação transmitir a outros jovens brasileiros o que eu aprendi.”
No palco da Ópera
Em 2023, outra brasileira com o mesmo nome também chegou à França para exercer um ofício dedicado às artes clássicas: aos 17 anos, Luciana Sagioro se tornou a primeira brasileira na companhia Ballet Opéra de Paris. Um ano depois, foi eleita por um júri Coryphée, um dos principais postos do corpo de baile, mas que também atua como solista.

A bailarina Luciana Sagioro
Luciana começou a dançar aos 3 anos de idade, em Juiz de Fora, onde nasceu. Durante toda a sua vida, foi uma aluna de balé clássico assídua e dedicada. Desde que se mudou para Paris, no entanto, deixou de ser aluna para ser oficialmente uma profissional: “O balé começou a ser o meu trabalho, o meu emprego, com tarefas e horários a cumprir”, diz. Ana Lívia Delgado, mãe e empresária da bailarina, explica que a filha é uma funcionária pública da França, já que a companhia Ballet Opéra de Paris é mantida pelo governo francês.
Atualmente, ela está se apresentando no espetáculo Bela Adormecida, de Tchaikovsky, mas já atuou nas peças Giselle e Paquita. Quando está em cartaz, Luciana e os outros bailarinos chegam a passar até 15 horas diárias entre ensaios e apresentações, incluindo fins de semana. “A dança é uma profissão que nos demanda muita perfeição. Sempre gostei de trabalhar com metas e objetivos, então a pressão nunca foi algo negativo para mim. Apesar de eu ser uma bailarina muito perfeccionista, sempre encarei isso de uma forma muito positiva”, diz, em entrevista à Versatille. “Cada vez que eu conseguia alcançar um sonho, um objetivo, eu almejava outros novos, maiores. Vejo isso como uma forma de crescimento pessoal e profissional, nunca como uma forma de competição negativa.”
Promessa do balé desde a infância no interior de Minas Gerais, a menina se mudou para o Rio de Janeiro aos 10 anos para estudar em uma escola de dança mais renomada. Aos 15, foi aprovada no Prix de Lausanne, concurso considerado a olimpíada do balé, na Suíça – Luciana foi uma das 70 bailarinas de todo o mundo selecionadas entre mais de 3 mil candidaturas e conquistou o terceiro lugar na final da competição, o que garantiu a ela oito bolsas de estudo em escolas de balé da Europa, entre elas a Opéra de Paris.
Apesar da rotina intensa de ensaios e apresentações, Luciana garante que vive uma vida (quase) normal de uma jovem de 18 anos. “A dança é o que eu mais amo fazer no mundo, realmente é onde eu me encontro, me sinto feliz e realizada. Não tem nada que eu queira fazer que a dança não permita. Tenho amigos, tenho namorado [também bailarino e membro da mesma companhia], vamos a festas em dias livres, tudo o que qualquer jovem pode fazer. O fato de ser uma bailarina profissional não me impede de viver”, diz.

Luciana Sagioro
O maior desafio para ela, no entanto, é a distância da família – além da mãe, Ana Lívia, as irmãs Paula e Sofia, de 17 anos. “São as pessoas que eu mais amo, que são realmente o meu porto seguro. Sofro com a distância, mas hoje em Paris eu tenho amigos de verdade, tenho meu namorado, eu me encontrei aqui e não me sinto mais sozinha. Aqui é minha casa agora.”
Para o futuro, seja próximo ou distante, a bailarina sonha em continuar subindo os degraus da companhia até se tornar “étoile”, ou seja, bailarina estrela, o cargo mais alto que uma profissional pode alcançar na dança. Além disso, tem planos de criar uma associação que ajude bailarinos e bailarinas brasileiros a sobreviverem da dança, como ela.
“Aqui [na França], as pessoas pagam para assistir, os ingressos esgotam com meses de antecedência, os nossos salários são mais altos. Mas no Brasil a desvalorização da modalidade começa muito cedo na carreira, quando os alunos têm incentivo ou recursos, com teatros em greve, bailarinos sem salário, espetáculos com ingresso sobrando. Isso é muito triste e, sem dúvida, trava muitas carreiras”, lamenta.
“Eu reconheço ter tido uma oportunidade rara: recebi todo o apoio financeiro e emocional da minha família, mas essa não é a regra”, percebe. “Bailarinos e bailarinas em formação precisam de apoio financeiro e emocional, uma família que acredite neles e os motive a seguir seus sonhos na dança. Por isso, quero criar uma associação para pequenos bailarinos que infelizmente não tenham o mesmo apoio que eu tive.”
Por Mariana Gonzalez | Matéria publicada na edição 138 da Versatille