Diário de Bordo: os aprendizados de Rodolfo Vilar, do Projeto A.MAR, em uma viagem pelo Japão
Dedicado ao resgate de técnicas antigas de preservação de pescados, o brasileiros cruzou o mundo para aprender em comunidades orientais

Tratado como peixe de descarte, sem valor comercial no Brasil, o bonito (katsuwonus) foi o que me levou para o Japão pela primeira vez, em 2022. Desde então, segue me fazendo voltar e construir uma história repleta de felizes coincidências, encontros generosos e aprendizados constantes, que começou muito antes disso.
Dedicado desde 2004, por meio do Projeto A.MAR, ao resgate de técnicas antigas de preservação de pescados, sem energia elétrica, para aplicar nas muitas comunidades pesqueiras que ainda vivem desta forma no Brasil, encontrei no katsuobushi, ingrediente fundamental do dashi (base de toda a culinária japonesa), um caminho para valorizar e comercializar um dos peixes não convencionais mais abundantes do litoral de Ilhabela. Foi justamente buscando conexões para trazer conhecimento aos pescadores da ilha que começou a viagem. Ao pesquisar, descobri que minha ideia não era nova. No século 20, famílias de japoneses que se instalaram na Praia da Armação (em Ilhabela) já exploravam a técnica e chegaram a abrir uma fábrica de katsuobushi no local onde hoje está instalado o laboratório do Projeto A.MAR. Contudo, com o tempo, essa tradição se perdeu.
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Pela internet, passei a me corresponder, meio lost in translation – já que, mais do que a língua, a forma de pensar na cultura oriental é diferente, e não há aplicativo de tradução que ajude –, com um produtor artesanal da província de Makurazaki, na ilha sul do Japão. Ficamos quase dois anos tentando nos entender, até que, em mais uma sequência de coincidências, conheci, durante um almoço despretensioso em São Paulo, a assistente do cônsul do Japão, a responsável por me conectar a quem poderia me ajudar com a comunicação “in loco”. Acabou que essa pessoa, a Shoko, era prima do meu então amigo virtual Yusuke San.

Registros de Rodolfo Vilar com Yusuke
Foram mais três anos de conversas on-line até que, em 2022, recebi o convite para conhecer a produção e ser discípulo de Yusuke, membro da quarta geração à frente da premiada família Kaneshichi, fornecedora de katsuobushi para os principais restaurantes do Japão. Sem saber falar uma só palavra em japonês, passei 16 dias praticamente calado, só escutando atentamente as lições traduzidas por Shoko em uma fábrica pequena, onde bisavô, bisavó, avô, avó, pai, mãe, filhos e netos trabalhavam juntos, lado a lado, incansavelmente. Parecia estar dentro de uma cena surreal do filme Pulp Fiction. Longe dos cartões-postais, dos programas turísticos e dos restaurantes badalados, vivia um êxtase, conhecendo um Japão real que abria seus bastidores e segredos para mim.
Um dia, tentando puxar conversa com um amigo de Yusuke, especializado em fazer caixas-raladores de katsuobushi, mostrei uma foto digitalizada de Ilhabela, em 1924, e o pai desse marceneiro – um senhor de 92 anos – reconhece numa placa, bem ao fundo da imagem, o nome da família de um amigo que havia se mudado para o Brasil no século passado e aberto justamente uma fábrica de bonito curado. Foi um momento emocionante, que deu origem a uma grande amizade.
Passado meu período de aprendizado com a família Kaneshichi, fui encaminhado ao porto de Zushi, perto de Yokohama, para me aprofundar na arte do ikejime, técnica em que se neutraliza o sistema nervoso do pescado para reter energia nas células e ter uma carne de mais qualidade.
O mestre indicado foi Hiroki Hasegawa, especialista no assunto, fornecedor assíduo dos mesmos exigentes restaurantes para os quais Yusuke trabalha, e cuja trajetória já foi tema de um documentário na NHK (TV estatal do Japão). Isto é, sem ter planejado nada, estava, na mesma viagem, tendo a oportunidade de aprender e conviver por dias com estrelas a quem os principais nomes da gastronomia do Japão confiavam a entrega de seus insumos mais fundamentais. Que sorte a minha.

Rodolfo Vilar com Hasegawa
No ano passado, voltei ao Japão para revê-los e agradecer por tamanha generosidade. Hasegawa me brindou com o convite para me hospedar em sua casa, uma honraria reservada a poucos em quem confia. E Yusuke San me apresentou o designer e cozinheiro Kanchan Adhikari, que está à frente do restaurante ADI, em Tóquio, aonde voltei recentemente para preparar um jantar a seis mãos, com produtos A.MAR. Entre eles, charcutarias de frutos do mar produzidas com variadas técnicas, como: bottarga; karasumi (ovas da tainha curadas); salame de atum, porco e pistache; ostra defumada; e lula em conserva, com kombu e shiitake.

Rodolfo no jantar a seis mãos no ADI
Em 2024 – já falando algumas frases em japonês –, fui com um novo mestre, o Juku, para as montanhas de Nara, no norte do Japão, local em que comecei a aprender a técnica de isolar fungos e bactérias para fazer a fermentação a partir de leveduras selvagens e a inoculá-las no pescado, o que resulta numa maturação dry age com fungos (mold aging). O processo é semelhante ao dos queijos azuis, que traz complexidades absurdas ao peixe, mas representa um desafio técnico imenso. Afinal, para o fungo se desenvolver, é preciso umidade, que por sua vez leva à decomposição do peixe e, portanto, deve ser cuidadosamente controlada pela temperatura.

Rodolfo com o presidente da Associação dos Produtores Japoneses de Katsuobushi
Talvez o katsuobushi brasileiro nunca chegue à altura de um produzido com a riqueza de sabor encontrada nos peixes criados nas águas geladas do Mar do Japão, mas já nos dá grande orgulho de, por exemplo, ser reconhecido na rua, em Tóquio, pelo presidente da Associação dos Produtores Japoneses de Katsuobushi como “o cara que produz katsuobushi no Brasil”. São as conexões e os reconhecimentos das nossas capacidades técnica e de execução que nos abrem cada vez mais portas e provam que, sim, o céu é o limite – principalmente para trocas de conhecimento que nos permitam levar às comunidades novas formas de gerar renda a partir do produto que a natureza lhes oferece.
Por Rodolfo Vilar | Matéria publicada na edição 137 da Versatille