A arte de caçar cogumelos e a sua importância para a gastronomia brasileira

Com o aumento do consumo do fungo no Brasil, os holofotes se voltam para os produtos selvagens e de cultivo nacional

Cogumelos encontrados em Parelheiros (Foto: Beatriz Calais)

Receber um convite para caçar cogumelos silvestres não é algo tão comum, principalmente quando se trata da realidade brasileira. Por muito tempo, fomos ensinados a tomar cuidado com esses alimentos, popularmente conhecidos pelos seus perigos e venenos. Mas será que o cenário real é tão catastrófico assim?  

 

Bem, só fui descobrir depois de receber tal convite inusitado – e não precisei ir muito longe para chegar à resposta. Foi em Parelheiros, distrito localizado no extremo sul da cidade de São Paulo, que tive uma experiência esclarecedora. Primeira surpresa: em pleno outono, a região estava lotada de cogumelos – invisíveis, à primeira vista, já que o olhar da maioria de nós não é treinado para encontrar a iguaria entre folhagens, gramíneas e raízes de árvores. Mas não é preciso muito tempo de prática para começar a enxergá-los.  

 

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É como se a mente passasse por um desbloqueio. A partir do momento que se enxerga um cogumelo, vários aparecem. A segunda surpresa é que eles não estão em meio a uma mata fechada, distantes da civilização. São encontrados aos montes na beira da estrada, nos entornos das praças e até no quintal de casa – inclusive, foi dessa última forma que Bruno Henrique da Silva, nosso guia ao longo do passeio, foi apresentado ao assunto.  

 

Conhecido como Bruno Forrageiro, ele foi o grande responsável para que o convite para “caçar”, “colher” ou “forragear” cogumelos chegasse à equipe da Versatille. Autodidata, nos últimos anos ele tem investido na missão de apresentar as suas descobertas para chefs. Dessa forma, conheceu Raphael Vieira, à frente do 31 Restaurante, e começou a fornecer algumas espécies selvagens para o seu menu sazonal. Nasceu daí uma parceria. E foi ao lado dos dois que um grupo de jornalistas teve uma tarde de puro aprendizado.  

 

Como já dito, os cogumelos estavam, surpreendentemente, por toda parte. Aprendemos a enxergar e colher, colocando todos em uma cestinha que depois iria para a cozinha. Sim, há certo estranhamento ligado a isso, mas esses cogumelos podem e devem ser comidos. “Utilizá-los na gastronomia serve quase como um controle de pragas. Eles não são nativos. Brotaram na região junto com pinheiros e eucaliptos, que foram plantados. Então, de certa forma, é um controle. Se eu não usar, ninguém vai. Um desperdício, visto que é um produto muito legal e que poucos conhecem”, revelou o chef Raphael Vieira.  

 

Mas a pergunta que está na cabeça de muitos é: isso é seguro? Não pode ser venenoso? Para esses questionamentos, Bruno tem uma resposta simples. “Ao longo da vida, aprendemos muito sobre plantas. Inclusive, cultivamos plantas tóxicas em nossas casas, como a comigo-ninguém-pode. Conhecemos essas, então não temos medo. Já o cogumelo, por não conhecermos, é temido”, destaca. “Em alguns lugares do Brasil, o ingrediente recebe até nomes negativos, como frieira. Quem vai querer comer um negócio chamado frieira? Esse medo está sendo quebrado aos poucos, com informação. Tem gente que imagina que vai morrer só de tocar no cogumelo. Não é assim.”  

 

Cogumelos encontrados em Parelheiros (Foto: Beatriz Calais)

 

O segredo é conhecimento e cautela. Não é seguro simplesmente encontrar um cogumelo no meio da rua, sem ter estudado sobre, e comê-lo, mas também não é preciso ter medo de encostar. Há muitas espécies catalogadas ao redor do mundo – um número estimado em 1,5 milhão. Algumas comestíveis, venenosas ou alucinógenas. É difícil diferenciá-las no “olhômetro”, mas é possível levar a ciência como aliada para aprender a forragear. Saber que nem todas as espécies encontram solo fértil em território brasileiro e estar atento caso apareça uma iguaria incomum na região.  

 

No caso de Parelheiros, os cogumelos silvestres mais presentes são extremamente conhecidos no mundo. O mais encontrado é o Lactarius deliciosus, que é conhecido como sancha em países como Portugal e Espanha, muito utilizado na gastronomia da Catalunha. “Ele é caro na Europa e nasce em grande quantidade bem pertinho da minha casa. Não tem como eu não gostar dele”, brinca o forrageiro. Outro sucesso local é o Macrolepiota, chamado de chapéu-de-frade pelos europeus. “É o meu favorito no quesito sabor. Um amendoado muito gostoso”, completa.  

 

Do início do outono até o fim do inverno, esses cogumelos são encontrados em grande quantidade em alguns pontos entre o Sul e o Sudeste do país. “Temos tanto para explorar. Todas as regiões têm características únicas, o que resulta em espécies diferentes. No exterior, eles têm uma tradição muito maior em relação aos fungos, mas, com acesso à informação, eu acredito que nós podemos começar a valorizá-los também”, diz Bruno. “Seja com os cogumelos silvestres ou os de cultivo.”  

 

MAIS JOIAS NO PRODUTO NACIONAL  

 

Nas últimas décadas, o Brasil, como o resto do mundo, vem atualizando seus hábitos alimentares. Hoje, há mais opções vegetarianas e veganas no mercado, por exemplo. E mesmo quem não se enquadra em nenhuma dessas delimitações alimentares tem enxergado os vegetais de uma forma positiva e pensado em reduzir o consumo de derivados de animais. Seja por conta disso ou pela simpatia com a gastronomia asiática – que sabe explorar o insumo com maestria –, o consumo de cogumelos no país está aumentando.  

 

Segundo dados divulgados em 2023 pela APTA (Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios), em 1996, cada brasileiro consumia, em média, 30 gramas de cogumelo ao ano. Após mais de duas décadas, consumimos cinco vezes mais, cerca de 160 gramas anualmente. Isso afeta o mercado em geral. Só entre 2015 e 2022, a importação do produto em conserva deu um salto de 70%, de acordo com dados do MDIC (Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços). 

 

O cultivo interno também é beneficiado por esse cenário. O champignon ainda é o protagonista da produção nacional, mas já cede espaço a tipos como shiitake, shimeji, cogumelo-do-sol, portobello e juba-de-leão. No ano passado, a ANPC (Associação Nacional dos Produtores de Cogumelos) divulgou uma estimativa de 14 mil toneladas de cogumelos produzidos em 2023. Ainda temos muito a aprender, mas parece que o reino Fungi está cada vez mais presente em nossas mesas – para a alegria de forrageiros e dos cozinheiros.  

 

PRESENÇA NAS COZINHAS  

 

31 Restaurante  

 

Cogumelos grelhados do 31 Restaurante (Foto: divulgação)

 

O fascínio do chef Raphael Vieira pelos cogumelos não surgiu a partir do contato com Bruno Forrageiro. “O meu interesse veio da vivência fora do Brasil. Dinamarca, Noruega e Estados Unidos, que foram países pelos quais eu já passei, os utilizam bastante na cozinha. Isso me fez voltar para cá pensando: o Brasil tem tudo, por que não teria isso?”, recorda.  

 

Já em solo nacional, com as portas de seu restaurante abertas, conheceu Bruno. “Ele veio aqui em casa para me apresentar os seus produtos, espécies com que eu já tinha trabalhado no exterior e não fazia ideia de que eram encontradas em excesso aqui em São Paulo.” Hoje, o 31 Restaurante trabalha com cogumelos silvestres e de cultivo (esse último para dar uma segurança ao cardápio, visto que não há controle sobre os insumos selvagens).  

 

“Nós somos sazonais. Colocamos e tiramos pratos de acordo com a disponibilidade do dia. Vamos adaptando a partir do que temos de mais fresco.” Esse tipo de cardápio também abre espaço para a criatividade. “Há muitas formas de apresentar o produto. Só na manteiga já é muito bom, mas no ano passado fizemos um misoshiru com alguns tipos de cogumelos. Foi um superprocesso. Não trabalhamos com ele o ano inteiro, mas talvez volte no próximo inverno.”  

 

Animus  

 

(Foto: Thays Bittar)

 

Para a chef Giovanna Grossi, do Animus, o cogumelo tomou outra forma a partir do programa Iron Chef Brasil, da Netflix. Em uma disputa com o chef Rafael Gomes, ela precisou criar um menu completo apenas com cogumelos. “Na época, eu pensei: lascou, não vou conseguir”, lembra, com humor. “Mas entendi que realmente não é difícil. São muitos tipos, com texturas e sabores diferentes. O eryngui, por exemplo, é fibroso, quase como uma carne.”  

 

Também com experiência no exterior, a chef chegou a ver a arte do forrageio em sua passagem pela Europa. “Na Dinamarca, em específico, as pessoas vão ao parque catar cogumelos. É um outro universo”, conta. No Animus, Giovanna compra os ingredientes de cultivo e os produtos dos ianomâmis, que chegam já secos em seu restaurante (para maior durabilidade) e contribuem para a geração de renda das comunidades produtoras.  

 

Corrutela 

 

Prato do Corrutela que leva cogumelo eryngui, creme de castanha de caju e amendoim (Foto: divulgação)

 

No Corrutela, que é conhecido por valorizar os vegetais em um cardápio criativo e autoral, o cogumelo é bem presente. “Sempre admirei o reino dos fungos, pela beleza e pelo poder desses ingredientes. É um produto que eu gosto muito de usar pela diversidade que propicia”, revela o chef Cesar Costa. “Todos os que eu uso no restaurante são de cultivo brasileiro, porém espécies asiáticas. Também compro alguns cogumelos selvagens de Santa Catarina.”

 

No paladar, sua forma preferida de consumo visa à simplicidade: na manteiga com alho e salsinha. “Melhor combinação do mundo. A partir dela, você faz refogado, coloca na massa, transforma em recheio de alguma coisa. É bem simples, mas especial para mim”, conclui.  

 

Por Beatriz Calais | Matéria publicada na edição 134 da Versatille

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