Para que serve um amigo?
O colunista Nelson Spritzer reflete sobre a importância da amizade para a vida humana
Para rachar a gasolina, emprestar a prancha, recomendar uma música, dar carona para a festa, passar cola, caminhar no shopping, segurar a barra. Todas as alternativas estão corretas; porém, isso não basta para guardar um amigo do lado esquerdo do peito.
Milan Kundera, escritor checo, escreveu em seu último livro, A Identidade, que a amizade é indispensável para o bom funcionamento da memória e para a integridade do próprio eu. Chama os amigos de testemunhas do passado e diz que eles são nosso espelho, que através deles podemos nos olhar. Vai além: diz que toda amizade é uma aliança contra a adversidade, aliança sem a qual o ser humano ficaria desarmado contra seus inimigos.
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Verdade verdadeira. Amigos recentes custam a perceber essa aliança, não valorizam ainda o que está sendo construído. São amizades que não foram testadas pelo tempo, não se sabe se enfrentarão com solidez as tempestades ou se serão varridos numa chuva de verão.
Veremos: um amigo não racha apenas a gasolina: racha lembranças, crises de choro, experiências. Racha a culpa e também os segredos. Um amigo não recomenda apenas uma música. Recomenda cautela, recomenda um emprego, recomenda um país. Um amigo não empresta apenas a prancha. Empresta o verbo, empresta o ombro, empresta o tempo, o calor e a jaqueta. Um amigo não dá carona apenas para a festa. Ele leva você para o mundo dele e topa conhecer o seu. Um amigo não passa apenas cola. Passa com você um aperto, passa junto o Natal ou o Réveillon.
Um amigo não caminha apenas no shopping. Anda em silêncio ao seu lado na dor, entra com você em campo, sai do fracasso sempre ao seu lado. Um amigo não segura a barra apenas. Segura a mão, a ausência, segura uma confissão, segura o tranco, o palavrão, segura o elevador.
Duas dúzias de amigos assim ninguém tem. Se tiver um, amém.
Se você tiver pelo menos um – preserve esse tesouro…
Por Nelson Spritzer, médico cardiologista