NFT movimenta o mercado artístico e traz novos olhares para a arte
O modelo de NFTs fomenta discussões sobre originalidade, acessibilidade e legado no mercado de arte
O coletivo de artistas americanos Fractal Studios anunciou em julho deste ano a realização de um novo projeto, que prometia ampliar os horizontes da arte. A fim de garantir a originalidade do rascunho Fumeur V (1964), de Pablo Picasso, adquirido por 105 mil reais em um leilão da Christie’s, o grupo decidiu queimá-lo – e divulgar o vídeo da destruição nas redes sociais. A ação, denominada “Burned Picasso” (“Picasso queimado”), teve o propósito de transformar a pintura em um token não fungível (NFT, na sigla em inglês). Sob o slogan “O Picasso queimado vive para sempre no blockchain”, eles defendem uma “destruição criativa” da obra.
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O conceito, já conhecido por especialistas do mercado financeiro, é uma novidade para o mundo da arte. NFT é uma forma de ativo digital que possui uma única cópia em toda uma rede blockchain (sistema aberto que permite rastrear o envio e recebimento de informação pela Internet). O token pode ser utilizado para representar a propriedade de itens únicos, como obras de arte. É o que explica Wendel Smith, especialista em criptomoedas e product owner na Vertex Technologies.
“Um artista acaba de finalizar sua nova criação, como uma imagem ou vídeo, e decide criar um NFT que irá representar a propriedade sobre sua arte”, exemplifica Smith. Quando a peça é registrada em uma blockchain, ela ganha o nome de criptoarte. “A partir desse momento, qualquer pessoa pode verificar na rede quem é o proprietário daquele token, que por enquanto é o próprio criador, e saber informações básicas sobre o ativo que ele representa, como nome, autoria e data de criação.”
O artista pode vender sua obra para um fã ou fracioná-la para que vários tenham acesso a uma parte. Então, outra pessoa possuirá o NFT e, se a venda continuar adiante, o histórico de transações permanecerá público na rede. Uma vantagem dessa dinâmica para o criador é que é possível configurar uma porcentagem do valor para que toda venda realizada de seu token retorne automaticamente para ele, gerando mais renda. Não há a necessidade de intermediários, como museus e galerias – que no futuro podem ser prejudicados, caso não se adaptem ao novo modelo.
O especialista explica que todo esse trâmite acontece em marketplaces descentralizados, como o OpenSea, que funcionam por meio de contratos inteligentes em uma blockchain. “Para usar esses serviços é necessário ter uma carteira digital com algum saldo de criptomoeda a conectá-la ao marketplace.” Por fim, o comprador utiliza a criptomoeda para adquirir a peça de interesse e o NFT é enviado para a carteira digital.
Cases de NFT
A primeira obra de arte virtual a ser vendida em uma grande casa de leilões foi Everydays: The First 5000 Days, uma colagem de 5 mil imagens criada por Mike Winkelmann, que atende pelo nome de Beeple. A peça, que levou 13 anos para ser feita, angariou 69,3 milhões de dólares em um leilão on-line da Christie’s, realizado em março deste ano.
Além das criptoartes visuais, o NFT pode ser aplicado para a venda de jogos, músicas, roupas e até memes. A cantora canadense Grimes vendeu a coleção de obras digitais WarNymph Collection Vol. 1, com músicas e desenhos exclusivos, por 6,3 milhões de dólares na plataforma Nifty Gateway em março. Ela doou parte dos lucros para a Carbon 180, organização sem fins lucrativos focada na redução das emissões de carbono.
O braço de leilões da Sotheby’s organizou duas vendas de artes digitais neste ano: a coleção The Fungible, com obras do artista Pak, que arrecadou 17 milhões de dólares, e o “Natively Digital”, o primeiro leilão com curadoria de trabalhos digitais notórios. A segunda operação teve como destaque a venda de Quantum, de Kevin McCoy, primeira obra com certificado de NFT na história, obtido em 2014, pelo valor de 1,5 milhão de dólares, e de CryptoPunk #7523 por 11,8 milhões de dólares, atingindo um novo recorde para a série digital lançada em junho de 2017 e desenvolvida pela dupla Matt Hall e John Watkinson no estúdio americano de jogos Larva Labs.
No Brasil, a artista Pabllo Vittar lançou uma “linha de moda” em NFT, em parceria com Nicopanda (do estilista Nicola Formichetti) e The Manufacturer. A coleção se trata de uma série de ilustrações animadas cuja renda adquirida pela venda foi revertida à Glaad (ong americana em defesa de pessoas LGBTQIA+).
Outra venda que chamou atenção no mercado foi o caso do emblemático “Nyan Cat”, vídeo em looping de um carinhoso gato cinza com corpo de bolacha voando pelo espaço e deixando uma trilha de arco-íris, criado por Christopher Torres. O GIF foi vendido por quase 600 mil dólares na plataforma Foundation.
Esse caso levanta uma questão: qual é a finalidade de comprar algo que pode ser visto de graça na Internet? A resposta do especialista em criptomoedas é simples. “Hoje, qualquer pessoa pode pesquisar no Google uma imagem de quadro de Picasso, mas o único benefício é o acesso à obra. A proposta de valor do NFT está nos benefícios que a propriedade sobre a obra dá, não somente seu acesso”, comenta Smith. “Ser proprietário de um quadro de Picasso tem muito mais valor do que ter um print dele no celular, assim como tem muito mais valor ser proprietário de um NFT.”
No caso específico do “Nyan Cat”, ou da primeira publicação feita no Twitter, que foi vendida como NFT por 2,9 milhões de dólares no site Valuables, é possível traçar ainda uma analogia com Marcel Duchamp, que levava objetos tipicamente banais para dentro de museus, dando à peça o teor de raridade.
Por dentro de uma criptoarte
Um jardim virtual, que usa a luz como ponto de partida e desenvolve-se por meio de uma combinação de processos analógicos e digitais: mais do que uma instalação imersiva, o Floras foi criado pela artista paulistana Rejane Cantoni como um projeto de pesquisa experimental. “Ele nasce como um experimento para entender o que a tecnologia do blockchain possibilita como pensamento para o ser humano”, conta Rejane.
Em meio à pandemia, com a aceleração do uso dos meios digitais, a artista-cientista (como a própria se define) começou a visualizar uma espécie de jogo, criando uma ideia de “arte versus natureza versus tecnologia”. “Pensei em fazer um jardim e trabalhar a questão da natureza através da geometria fractal. Construí objetos de natureza artificial, virtual.”
Convidada pelo CJ Shops para tirar a ideia do papel, Rejane, que trabalha com exposições site-specific (planejadas como experiência para o espaço onde estão localizadas), estabeleceu uma dinâmica de vitrine, para que interessados possam comprar um lote da instalação, com 10% do lucro revertido para o Graacc (hospital especializado no tratamento de tumores infantis). “Hoje, Floras são vídeos com dez segundos cada, apresentando um looping de luz em movimento de íris.”
Para complementar a experiência, a artista criou um perfil no Instagram para divulgar as espécies digitais germinadas no jardim. Internautas também podem contribuir para cultivar as flores. “É possível contribuir de duas formas para o projeto: comprando ou deixando um like. Isso vai gerar continuidade à máquina.” Do analógico ao digital, o comprador ou visitante da página torna-se um coautor da obra. “O futuro do Floras depende de você, não de mim.”
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O futuro?
Pode ser cedo para afirmar se esse é, de fato, o caminho que a arte seguirá no futuro. Mas é possível apontar tendências com base em evidências. Em se tratando de originalidade, tão valorizada pelo mundo da arte, o NFT cumpre os requisitos. “A lógica do blockchain e do NFT aplica-se muito bem ao ecossistema da arte”, afirma Rejane. Para a paulistana, outro benefício é a possibilidade de o artista se agenciar e ter mais controle de suas finanças. “Eu venho de uma geração que acreditava não caber ao artista falar sobre dinheiro”, acrescenta. “A evolução natural é o NFT.”
Essa não é a única polêmica envolvendo o assunto. Transformar um Picasso em NFT é, por um lado, valorizar sua raridade, promover maior acessibilidade e preservar seu legado digitalmente. Mas, por outro, é necessário queimar o original físico irreplicável? Se arte é revolução, há algum limite?
Por Mattheus Goto | Matéria publicada na edição 121 da Versatille