A importância histórica e simbólica do batom na era das máscaras
A narrativa por trás da criação do batom reafirma seu papel social, mesmo em tempos nos quais os lábios estão escondidos
Vivemos a era das máscaras. Conter o avanço da transmissão do novo coronavírus equivale a esconder os lábios com um pedaço de tecido. O ato de colori-los antes de sair de casa entrou em xeque. O que antes era indispensável no ritual de maquiagem – o papel do batom – se tornou um dilema na pandemia.
Pintar os lábios é uma tradição milenar. Historiadores acreditam que os primeiros indícios da prática ocorreram na Mesopotâmia, com os povos sumérios. As mulheres pulverizavam minérios para decorar os lábios. Já no Egito Antigo, pigmentos vermelhos eram extraídos de algas, contendo iodo e bromo manitol, o que causava sérios problemas de saúde.
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Segundo o historiador João Braga, professor do curso de moda da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), a ideia não estava necessariamente associada a colorir, mas a dar brilho à parte do rosto. “A escolha pela cor vermelha surgiu com o propósito de conferir intensidade maior aos traços. Vida, energia, ação, movimento. O vermelho passa essa sensação por ser quente”, comenta.
Durante diversos períodos da história, a prática foi vista com maus olhos. Na Grécia, o uso ficava restrito a prostitutas. Na Europa medieval, a maquiagem era condenada por grupos religiosos por supostamente representar “a encarnação de Satã”. “Com a Belle Époque, surgiram mulheres mais intensas, que usavam maquiagem e se destacavam na multidão, algumas com lábios bem acentuados”, completa Braga.
O batom só passou a ser produzido em escala industrial e nos moldes que conhecemos hoje no fim do século 19. Pioneira, a marca Guerlain inventou em 1870 o primeiro rouge à lèvres (termo utilizado em francês para denominar o acessório; “vermelho aos lábios”, em tradução literal) na história da maquiagem.
“Pierre François Pascal Guerlain, fundador da marca, teve a grande ideia de aplicar a massa do batom em um minicastiçal de ouro e, assim, a mulher poderia aplicá-lo usando apenas uma das mãos”, afirma Gisele Magatti, especialista da Guerlain e responsável por ministrar os treinamentos da marca no Brasil. O nome dado ao produto, feito de óleo de castor e cera de abelhas, foi “Ne m’oubliez pas”, ou “Não me esqueça”.
No pós-Segunda Guerra Mundial, a sutileza continuou presente na maquiagem, completa Braga. Foi só por volta de 1920, com o surgimento da indústria cinematográfica, que o batom vermelho passou a ser objeto de desejo das mulheres. “Para as divas do cinema, como Marlene Dietrich e Jean Harlow, a exigência era um rosto impecável para as filmagens”, diz Braga.
A gama de cores começou a ser ampliada em 1960, “década que trouxe inúmeras inovações estéticas e tecnológicas para a época”. Outras marcas, como Chanel e Dior, também decidiram se aventurar na criação de batons, com o Gabrielle e o 9, respectivamente.
No Brasil, as novidades só chegaram no fim do século. “Na década de 1990, quando estava na adolescência e comecei a brincar com a maquiagem, não havia grandes marcas no Brasil”, relata a maquiadora Fabiana Gomes, que só conheceu e experimentou opções do acessório quando se tornou embaixadora da M.A.C no país, em 2002. Sua marca registrada tornou-se o forte tom de vermelho Ruby Woo, da M.A.C, um clássico lançado em 1999, eleito campeão de vendas ao redor do mundo.
Um simples batom pode ser revolucionário.
Fabiana Gomes
“Para mim, o batom me mostra que estou pronta. A cor me valoriza. Por ter um efeito rápido, ele também oferece praticidade e eu nunca gostei de gastar muito tempo com maquiagem”, diz. Para a profissional, o cosmético representa poder e causa fascínio nas pessoas. “Já fui parada em lugares inusitados e questionada sobre a cor que estava usando.”
Além do impacto visual, o batom tem um apelo lúdico, de explorar e brincar com os traços do rosto. A maquiadora acredita que há ainda um aspecto provocativo, de questionar valores conservadores ao ser usado em um lugar inesperado, fora do universo feminino.
“Ainda temos uma série de barreiras para ultrapassar antes de essas situações rolarem de maneira genuína, mas já começou. Qualquer um pode usar batom, não tem nada a ver com sexualidade ou orientação sexual. É importante que esse lugar seja ocupado e gere esse tipo de incômodo e debate.”
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Na era das máscaras, os lábios não perdem a cor. “Com ou sem máscara, na rua ou em casa, as pessoas querem continuar usando o batom em suas rotinas de beleza e skincare, como uma ferramenta de autoconfiança e autoestima”, afirma Gisele. Para a especialista da Guerlain, o importante é sentir-se bonita da maneira que quiser, com o que quiser.
A indústria cosmética avançou a ponto de criar produtos com fórmulas aprimoradas que, além de ser hidratantes, não transferem tinta para as máscaras. “O batom não vai se aposentar tão cedo. Já o gloss, talvez, tenha de ir para outras partes do rosto”, brinca Fabiana. “Um simples batom pode ser revolucionário.”
Por Mattheus Goto
Ilustração por Rogério Maroja
Matéria publicada na edição 118 da Versatille