Uma viagem pelo Vale do Itata, região chilena com vinhos surpreendentes
Ainda pouco conhecida, a região fica localizado a 600 quilômetros rumo ao sul da capital Santiago
Embora o Chile seja um destino recorrente para os enófilos brasileiros, ainda existe uma joia a ser descoberta no país. Estou falando sobre o Vale do Itata. Localizada a 600 quilômetros rumo ao sul da capital Santiago, mais próxima da influência marítima, a região histórica guarda segredos em suas raízes ancestrais, belíssimos vinhos com senso de lugar, além da acolhida única de sua gente.
A primeira vez que fui a Itata foi há seis anos, a convite da organização Catad’Or, para um tour que se intitulava Cata Ancestral. A ideia era visitar pequenos produtores da área e fazer uma degustação profissional de seus vinhos. Com o grupo estava o sommelier inglês Alistair Cooper, que teve como trabalho de conclusão de curso de Master of Wine justamente a região chilena, conhecida pelo importante projeto de conservação de suas vinhas centenárias.
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Impossível passar indiferente a tanta beleza da paisagem bucólica, com cidades pitorescas e repleta de construções que contam seu passado, com diversos terremotos que impactaram diretamente na arquitetura. Há um ponto onde dizem ser o melhor pôr do sol do mundo. Não tenho referência tão abrangente, mas presenciei um inesquecível no local.
É uma região majoritariamente rural, com pequenas propriedades e produtores que ainda trabalham vinhas antigas de variedades tintas: país, cinsault, malbec e brancas moscatel e corinto, entre outras. Durante muito tempo, tais uvas foram vendidas por valores bem baixos a grandes produtores de vinho, e/ou os vinhos locais foram comercializados a granel. Nas últimas décadas, esses vinhedos foram despertando o interesse de enólogos curiosos e cheios de conhecimento, que viram ali uma joia escondida: vinhedos centenários gerando uvas que permitem a produção de vinhos profundos e encantadores.
Quando se vê uma videira de 200 anos, é gerado um choque: inimaginável pensar nisso tão próximo de nós. Somos mais antigos do que sabíamos. Nessa ocasião, por volta de 2017, visitamos a senhora María Isabel Labra, que vivia no meio do mato, sozinha com suas parreiras selvagens. Ela construiu a própria casa, de adobe, e também fazia sozinha seus vinhos. Entre eles, o excelente espumante brut seco Sol Violeta, que ganhou medalha de ouro no Concurso Catad’Or Ancestral 2017, e o complexo Brut All. Foi uma experiência e tanto, e obviamente tive ganas de voltar.
Corta para 2023, quando, em março, a convite da Wines of Chile, órgão que promove os vinhos chilenos, retornei à região. Lamentavelmente, um incêndio tinha arrasado parte dela um mês antes. Fui a áreas incendiadas, e a imagem era de desolação. Mas, apesar das perdas, o cenário era outro: inúmeros produtores se uniram para fortalecer o Vale do Itata, num esforço coletivo extremamente belo.
Com Marco De Martino, da reconhecida De Martino Wines – que também produz vinhos nas regiões de Maipo e Maule, trazidos ao Brasil pela Winebrands –, pude ver terra arrasada e também uma vinícola de 100 anos sendo restaurada por ele para fazer vinhos como antigamente. No Borra Bar de Vinhos, localizado despretensiosamente à beira da estrada em Guarilihue (Itata), onde nos fins de tarde os enólogos e produtores se reúnem, degustamos alguns de seus rótulos feitos na região, como o Gallardía, um vinho fresco, intenso, mineral, complexo, elaborado com a uva cinsault, que nos surpreendeu a cada gole.
Se alguém acha a sede261, bar de vinhos paulistano do qual eu e Daniela Bravin somos proprietárias, louca é porque ainda não viu esse bar pitoresco, com vinhos de todos os produtores do vale, queijos das adjacências e, claro, a simpatia habitual da região. Perfeito.
Depois disso, tive uma das visitas mais gratificantes da vida na cozinha – sim, cozinha– da senhora Eliana Sanhueza, que produz vinhos maravilhosos com as uvas moscatel, país e cinsault, sob a orientação da premiada enóloga Ana Maria Cumsille. Acompanhado de uma comida típica do campo, com tomates, batatas, cozido e pãozinho recém-assado, desfrutei o melhor almoço da viagem e o seriíssimo moscatel Casas de Mollihua (mesmo nome da vinícola), com acidez, volume numa medida ótima, além de uma ponta salgada surpreendente, que me mostrou uma nova face dessa variedade.
Ana Maria ainda chamou outros enólogos locais para abrir vinhos conosco. Foi uma tarde de encontros memoráveis, com gente da terra apresentando as lindezas que produzem com muita honestidade e valor ao solo. Destaque para o País do produtor Adrian Torres, proveniente de vinhas de 200 anos, vinificado em tinajas (ânforas de argila) e envelhecido dez meses em barrica velha de carvalho.
Para coroar esse dia, fui à propriedade de Leonardo Erazo, um dos produtores mais festejados da região, mas ainda pouco conhecido pelo público em geral no Brasil, onde seus vinhos lamentavelmente ainda não são comercializados. Força motriz desse movimento de volta à terra em Itata, ele faz um trabalho incrível de classificação de sua região por tipos de solo e altitudes. Tenho ainda, e guardarei para sempre, o mapa feito à mão que ele me “regalou”, com todas as sub-regiões de Itata, fruto de um exímio conhecedor de seu lugar. Uma lindeza sem igual.
A seu lado, pudemos provar toda a extensa linha da vinícola, como o La Resistencia, de uma parcela plantada há 180 anos num terreno que combina altitude e solo granítico. Na taça, um vinho de estrutura única, taninos finos, frutas vermelhas frescas e um caráter mineral, reflexo do terroir onde prosperam essas vinhas.
Generoso, ele chamou mais de dez produtores diminutos de sua região para que eu provasse seus vinhos. Não me esquecerei nunca da jovem produtora Consuelo Poblete, que nos presenteou com uma garrafa do projeto El Rito, feito de uvas de uma parcela herdada de seu avô que foi totalmente destruída pelo incêndio recente.
E assim, depois de um dos pores do sol mais lindos que já vi, terminei o dia contabilizando 58 vinhos degustados com muita gente nobre e orgulhosa em mostrar seu trabalho. E eu, feliz pelo privilégio de estar com ela.
Por Cassia Campos | Matéria publicada na edição 132 da Versatille