Sabor da raiz

EM CONTRAPONTO À ALTA GASTRONOMIA, HOJE QUESTIONADA EM SEUS FUNDAMENTOS E CUSTOS, AS CHAMADAS “COZINHAS DE ORIGEM” GANHAM, CADA VEZ MAIS, ESPAÇO AO VALORIZAR A AUTENTICIDADE DO PALADAR E INGREDIENTES CULTIVADOS DE MODO SUSTENTÁVEL No lugar

EM CONTRAPONTO À ALTA GASTRONOMIA, HOJE QUESTIONADA EM SEUS FUNDAMENTOS E CUSTOS, AS CHAMADAS “COZINHAS DE ORIGEM” GANHAM, CADA VEZ MAIS, ESPAÇO AO VALORIZAR A AUTENTICIDADE DO PALADAR E INGREDIENTES CULTIVADOS DE MODO SUSTENTÁVEL

 

No lugar da cozinha tecnoemocional, do termomix e das esfericações que fizeram a fama planetária do chef catalão Ferran Adrià ou da avalanche de ousadias e experimentações sensoriais à mesa do chef britânico midiático Heston Blumenthal e do séquito de seguidores da dupla mundo afora — a boa e velha culinária de origem volta à cena com toda força. De forma consistente e crescente, as chamadas “cozinhas de raiz” têm despertado, cada vez mais, a atenção da crítica especializada, cativando, de quebra, o paladar do consumidor brasileiro, cujo bolso, por sinal, há tempos, tem sido fustigado pela recessão do país.

 

Ou seja: em contraponto aos cânones e aos vanguardismos da alta gastronomia, no qual se valorizam técnicas de cocção superelaboradas, o prazer estético e os ingredientes raros e caros e, por vezes, de dificílima construção e compreensão, ressurgem e se firmam por todo o país endereços que buscam valorizar a simplicidade e a autenticidade dos sabores, sua verdadeira origem e essência, resgatando a qualidade e a procedência dos ingredientes, sua sustentabilidade, o respeito ao produtor e de toda a cadeia produtiva e a prática de preços justos, enfim. “No frigir dos ovos, o que realmente importa são os ovos. Se forem caipiras, tanto melhor. Se puder me aproximar de quem alimentou a galinha, estarei fazendo a cozinha que me alimenta”, conceitua Mara Salles, chef do estrelado restaurante Tordesilhas, guardião e referência há quase três décadas da melhor cozinha brasileira de São Paulo.  “No mundo todo, o consumidor quer comer bons produtos transformados com verdade. E a verdade não precisa custar caro. Democratizar, fazer uma cozinha mais simples — mas nem por isso menos criativa ou menos comprometida com bons ingredientes — me parece a tônica atual”, diz a tarimbada e premiada cozinheira.

 

Para Mara, no entanto, a redescoberta dos ingredientes brasileiros e de um movimento de retorno à simplicidade e de uma volta às origens culinárias não é assim tão recente. “Nos últimos dez anos, sobretudo, tanto profissionais quanto boa parte dos restaurantes e da própria clientela começaram a olhar com mais carinho para esses ingredientes e para uma “culinária de raiz”,  de valorização do terroir. E muitos cozinheiros, como eu, trabalharam duro e com paixão para que isso acontecesse”, diz para, em seguida, concluir: “A comida tradicional é feita de maneira caseira e, embora seja uma coisa afetiva e muito atraente para a grande maioria, por vezes, ela perde um pouco a ‘graça’. Por isso, é necessário agregar expertise e técnica para deixá-la tão saborosa quanto àquela que comemos na casa das nossas avós. Isso explica, em boa medida, a consistência e a longevidade da proposta do Tordesilhas”.

 

Ainda segundo a chef, em qualquer parte do mundo, a boa gastronomia, seja sofisticada ou simples, requer matéria-prima de qualidade — o que inclui, obrigatoriamente, produtos com procedência, rastreabilidade e modo de produção confiáveis.

 

“O bom cozinheiro não trabalha só com ingredientes extraordinários, raros ou impactantes — isso é um mito. O que é mais usado numa cozinha são tomates, cebolas, alho, sal, azeite e, nem por isso, a qualidade desses ingredientes, considerados “ordinários” e basilares, mas onipresentes em no nosso dia a dia, devem ser subestimados ou menosprezados”, ressalta.

 

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No Tordesilhas, por exemplo, todas as hortaliças são provenientes de uma associação de produtores orgânicos. “Buscamos, com isso, valorizar não somente as origens desse país, que é rural, mas as nossas melhores tradições culinárias”, sublinha Mara, que nasceu em uma fazenda em Penápolis, no interior paulista. “Seria leviano dizer, no entanto, que eu só cozinho com produtos orgânicos ou com artesanais. Todo restaurante esbarra em questões logísticas, de custo, em razão das enormes distâncias, que acabam por inviabilizar o sonho de todo cozinheiro de escolher um a um o melhor tomate, a melhor batata, etc.”, observa. “Mas, se por vezes é impossível conhecer quem os produziu, deve-se exigir ao menos que o ingrediente seja fresco, “limpo” e livre de agrotóxicos — e todo estabelecimento sério não pode abrir mão disso”, ressalta.

 

De acordo com a cozinheira decana, os melhores produtos ficam “escondidos”, por vezes, em pequenas roças, nos currais, no meio da floresta. Para ela, apoiar esses pequenos produtores é, além de proporcionar aos consumidores mais conscientes terem acesso a esses ingredientes, contribuir para que deem continuidade a esse precioso trabalho ao lado de uma vida digna. “Mantê-los no seu lugar de origem é uma maneira de fazer que a terra seja cuidada, respeitada — é um círculo virtuoso no qual todos se beneficiam”, afirma.

 

Tal valorização vital para toda cadeia — do ingrediente no campo até chegar à mesa —, também é fonte de preocupação e inspiração permanentes às propostas do Bistrô Ó-Chá, de São Paulo (www.bistroocha.com.br), misto de restaurante mediterrâneo e casa de chás orientais, e do restaurante Stefano (www.restaurantestefano.com.br), de cozinha piemontesa, que fica em São Roque, a menos de uma hora da capital paulista. No menu do bistrô paulistano costumam aguçar o paladar as criações da portuguesa Mônica Costa. Antes de abrir o seu espaço numa charmosa casa da Vila Madalena, Mônica perambulou por Macau, países do Oriente e pela própria Terrinha, para definir as linhas de trabalho que norteiam, hoje, sua cozinha artesanal.

 

Ciosa da qualidade e da procedência da matéria-prima, ela faz questão de utilizar nas criações produtos orgânicos como verduras, hortaliças, carnes de frango (Korin) e peixes selvagens. Mas evita, porém, transformar essa filosofia adotada pelo Ó-Chá como mero argumento de marketing.

 

“Faço isso porque acredito no conceito de comida saudável e não porque quero aumentar minha clientela ou as vendas, esclarece. “Nossos pães, por exemplo, são feitos pelo meu marido, David Vaz”, diz. Apaixonado pela técnica do levain, ou de fermentação natural, uma herança do pai, padeiro de ofício, Vaz passou a pesquisar a fundo o tema, anos atrás, a fim de esmerilhar as próprias receitas. Hoje, o Ó-Chá é abastecido integralmente por suas fornadas, que incluem desde os excepcionais pães de especiarias, bagel e brioche aos de hambúrguer e sem glúten. Ainda norteiam a criatividade da cozinha e a sempre coerente filosofia da casa a sazonalidade dos produtos, sempre ultrafrescos, e o desperdício próximo a zero.

 

Um conjunto de premissas que, também, torna o sexagenário Stefano, nos arredores de São Paulo — um dos mais longevos restaurantes do interior paulista —, referência obrigatória de cozinha familiar de qualidade feita com simplicidade, paixão e sabor, muito sabor. Comandado, hoje, pelos chefs Guido, Stefano e Franco, pertencentes, respectivamente, à segunda e terceira gerações dos Borsarelli, o lugar segue os preceitos gastronômicos do patriarca e fundador, seu Stefano, já falecido, oriundo da pequena Mondovì, região do Piemonte, nos longínquos anos 1950, e em cujas veias já corria o talento de restauradores e hoteleiros de longa data.

 

O destaque desse autêntico e raro endereço da boa mesa italiana de sabor caseiro fica por conta, desde sempre, das massas artesanais ali perpetradas, com destaque para o inigualável cannelloni, e do frango al sapo, ambas especialidades antológicas da cozinha. Anote ainda: os pães, molhos e um gostoso limoncello são produzidos na casa. E mais: verduras, legumes e temperos, além do precioso limão siciliano, base de seu licor, são plantados na propriedade desse clã ítalo-são-roquense, sem o uso de agrotóxicos e sob o olhar de Daniela Borsarelli, mamma dos chefs. Exceção apenas aos excepcionais cogumelos e à célebre alcachofra cultivados por produtores parceiros, que são escolhidos a dedo pelos cuocos oriundi para compor as preparações. “Seguimos os princípios de nossos nonnos: comida de qualidade, hospitalidade e amizade, sem deixar de lado a alegria de uma buona família italiana”, diz em bom “italianês” o simpático chef Stefano Bruzzone. Bem-vindo às origens. Benvenuti à buona tavola.

 

Gastronomia por Marco Merguizzo | Matéria publicada na edição 98 da Revista Versatille

 

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