O retorno da música disco e da estética dos anos 1970 e 1980
O gênero musical e a estética que abrilhantaram as pistas de dança 50 anos atrás retornam ao mainstream com artistas como Dua Lipa, Miley Cyrus e The Weeknd
“You can dance, you can jive, having the time of your life. See that girl, watch that scene, digging the dancing queen. Um dos refrões mais conhecidos da história da música traz à mente, por si só, o piano vibrante, o ritmo propulsivo e os timbres agudos das vocalistas sopranos do grupo sueco ABBA. A canção, lançada em 1976, é uma marca da música disco, que dominou as casas noturnas da década e deixou um legado que pulsa até hoje.
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Nostálgicos e aficionados às antigas faixas – que em breve completam seu cinquentenário – não foram os únicos a ouvir sons similares no último ano. A sonoridade e estética da disco music fez-se presente em diversos lançamentos de artistas pop durante 2020. Em março do último ano, quando a pandemia estourou, a cantora e compositora britânica Dua Lipa lançou seu segundo álbum de estúdio, Future Nostalgia. O título já apresenta a proposta conceitual: reimaginar a música dançante dos anos 1970 e 1980. As 11 canções retrofuturistas evocam sensações positivas, em reverência à velha-guarda.
Em uma live realizada em seu perfil no Instagram antes do lançamento do álbum, Dua caiu em lágrimas ao compartilhar com os seguidores suas dúvidas e incertezas sobre o novo disco. “Não sei se é a coisa certa a fazer”, disse. A artista de 25 anos relatou estar em conflito e demonstrou preocupação com o sofrimento das pessoas ao redor do mundo. Por fim, seguiu com o projeto e até antecipou o lançamento, para “trazer um pouco de alegria” aos fãs.
Future Nostalgia se tornou um sucesso. Na semana de estreia, alcançou a marca de 297 milhões de streams e, um ano depois do lançamento, ultrapassa os 6 bilhões. Ele se tornou o álbum feminino mais ouvido no Spotify em 2020 e bateu o recorde como disco de artista feminina britânica mais tocado nas plataformas digitais em um único dia.
Dua ainda foi indicada a seis categorias no Grammy Awards de 2021 e ganhou o gramofone dourado por Melhor Álbum Pop. As conquistas impulsionaram a obra para o lançamento de remixes, uma versão deluxe e uma live batizada de “Studio 2054” (lembrando a lendária discoteca em Nova York, Studio 54), que teve mais de 5 milhões de visualizações.
Esse caso não foi isolado. Outros projetos artísticos criaram as próprias versões de Os Embalos de Sábado à Noite (clássico de 1977 com John Travolta). O canadense The Weeknd lançou After Hours, com inspirações no cantor Prince e nas bandas Duran Duran e Flock of Seagulls. O cantor foi o segundo artista mais ouvido do ano passado no Spotify e sua canção Blinding Lights passou um ano inteiro entre as dez mais tocadas no ranking da Billboard Hot 100 – primeira música na história a realizar o feito.
O novo trabalho de Kylie Minogue, intitulado DISCO, também relembrou os tempos da brilhantina, prestando homenagem às clássicas Donna Summer e Diana Ross. O mesmo acontece nos aclamadíssimos What’s Your Pleasure, de Jessie Ware, e Róisín Machine, de Róisín Murphy.
Outra protagonista da onda setentista é Miley Cyrus, que optou por uma abordagem mais próxima ao new wave (gênero musical do rock que surgiu no fim no anos 1970) para produzir o álbum Plastic Hearts, com influências de Stevie Nicks, Blondie e Olivia Newton-John. A sonoridade da disco music colaborou até para artistas ganharem mais visibilidade, como o caso da rapper Doja Cat, que ficou conhecida com o hit Say So.
Basta ouvir qualquer uma das canções citadas anteriormente para imaginar a pista de luzes piscantes e o globo espelhado. Não é de se esperar que essa tendência, cuja essência preza tanto pela positividade, tivesse como contexto um momento tão pesado quanto o da pandemia – mas essa relação pode fazer mais sentido do que parece.
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A disco music surgiu em meio a um cenário de instabilidade econômica nos Estados Unidos, marcado pela crise do petróleo, queda na bolsa de valores, greves e uma recessão que gerou inflação e altas taxas de desemprego. No contexto histórico, o país ainda havia assistido à explosão dos movimentos pelos direitos civis dos negros e à morte de Martin Luther King Jr. A sequência de fatos traça paralelos com os acontecimentos de 2020, ano em que a causa antirracista ganhou ainda mais força.
Com mensagens de empoderamento, a música disco foi uma via de libertação para pessoas marginalizadas, principalmente de minorias sociais. As características registradas do gênero são a batida reta e o contratempo forte, acompanhados pelo baixo e pelo arranjo de cordas. A estética também é uma marca, com paetês, calças boca de sino, franjas, tecidos metalizados, botas e plataformas, que ficaram em alta no último ano nos desfiles de Givenchy, Yves Saint Laurent, Stella McCartney e Balenciaga.
“É uma nostalgia de quando podíamos dançar”, afirma Guilherme Guedes, jornalista especializado em música e apresentador dos canais Multishow e Bis. “Estamos vivendo um momento tão tenso, pesado e cheio de dúvidas que as pessoas se apegaram a uma música leve e divertida e que faz querer dançar mesmo que não possamos.”
Segundo Guedes, a disco esteve presente no mainstream até os anos 2000 e 2010, quando houve a explosão da EDM (electronic dance music). “No pop, há sempre movimentos de ação e reação. As pessoas estavam sentindo falta de um som mais orgânico, sem a sonoridade digital de computador”, comenta.
Musicalmente falando, a diferença entre as duas eras ocorre nesse ponto: para dar a mesma ambientação de uma banda tocando no palco, a produção dos novos lançamentos incorporou elementos eletrônicos, como sintetizadores tecnológicos, que permitem criar mais tipos de arranjos e sons de instrumentos. As letras também mudaram: “Antes havia um hedonismo, ‘vamos festejar, curtir e dançar’. Hoje não há um padrão, cada artista fala sobre seu momento de vida”.
A música disco é um fenômeno. Nasceu na segunda metade de 1970 e teve seu auge em 1977, mas começou a perder espaço na virada para 1980. “Surgiram outros tipos de som, com bateria eletrônica e teclado”, explica o jornalista. “Durou pouco tempo, mas influenciou o que veio depois. Nos anos 1980, apareceram baterias eletrônicas e as pessoas tentam fazer disco music nesses instrumentos.” Essa experimentação resultou na invenção do house e de outros estilos de eletrônica.
“Se não tem a batida, tem o arranjo de cordas. Se não tem o arranjo, tem as letras hedonistas. O legado da disco é enorme e vemos o desdobramento dela até hoje”, conclui. Em tempos de pandemia, nos quais o futuro é imprevisível, a nós resta a esperança de dançar, se esbaldar e aproveitar o momento de nossa vida.
Por Mattheus Goto | Matéria publicada na edição 119 da Versatille