Marcio Scavone
“A DIFERENÇA DO FOTÓGRAFO QUE FOI CRIADO NO TEMPO DO ANALÓGICO PARA O QUE NASCEU NA ERA DIGITAL É A DISCIPLINA. PORQUE A ERA DIGITAL É GENEROSA.” A casa no paulistano bairro do Brooklyn, na rua
“A DIFERENÇA DO FOTÓGRAFO QUE FOI CRIADO NO TEMPO DO ANALÓGICO PARA O QUE NASCEU NA ERA DIGITAL É A DISCIPLINA. PORQUE A ERA DIGITAL É GENEROSA.”
A casa no paulistano bairro do Brooklyn, na rua Nebraska, tinha três quartos. Ainda está lá. Mas o pequeno Marcio Scavone dormia no escritório, ouvindo o som do teclado da máquina de escrever Erika e próximo aos livros que o pai escrevia.
“Nunca fomos rico. Nossa riqueza era cultural. Cresci no meio de livros”, diz Scavone, hoje o primeiro fotógrafo a ser eleito para a Academia Paulista de Letras seguindo os passos do pai, o escritor Rubens Teixeira Scavone e da avó, a romancista Maria de Lourdes Teixeira..
Coincidência ou não, o livro Copo de Luz, Alice Publishing Editora, fez seu début na mesma ocasião de sua posse.
“São 40 anos de profissão e esta honra, para mim, é seu ponto mais alto. Levo para a minha cadeira a fotografia plenamente reconhecida como linguagem”, declara Scavone.
IMAGENS E A ACADEMIA.
Eu acho que estou dando muito ênfase à palavra imagem porque a vida inteira me alimentei delas. Obviamente, sempre fui atraído pela poesia, que, para mim, está para a fotografia como a prosa está para o cinema. Então, foi um caminho natural. Num tempo que a Academia Paulista de Letras está abrindo espaço para a música. Temos dois maestros lá. O Júlio Medaglia e, agora, o recentemente empossado, o pianista João Carlos Martins. Mas, como artista visual, eu, realmente, fui o primeiro. Tenho muito orgulho disso, é claro. De estar lá pela minha fotografia. Eu gosto de escrever, sempre escrevi. Vejo as coisas muito misturadas hoje em dia. Em Copo de Luz tem um capítulo chamado “Fazedor de Imagens”. Por causa do nosso mundo digital, todo mundo está se comunicando com imagens.
UMA CÂMERA NA MÃO.
Tem uma parte em Copo de Luz em que falo que é muito difícil para nós fotógrafos — andando a pé com uma câmera na mão — ter uma visão clara da praia de Copacabana ou da avenida Paulista, porque, vamos supor, vai estar embutido em nós o medo de ser assaltado. Para vencer esse medo, estaria acompanhado por um segurança ou um assistente, forte. Pronto. Não estaria mais sozinho. A experiência novamente não vai ser completa.
Mas se essa experiência fosse em Paris ou Londres, o fator segurança já não valeria mais. Só entraria o fato de se estar rodeado de pessoas. Estou dizendo que, em lugares em que estou mais exposto, viro um homem das cavernas. Toda essa injeção de emoção na hora de obter a fotografia acaba se refletindo na imagem que estou criando.
VIAJANTE SOLITÁRIO.
Eu nunca estou sozinho com uma câmera. Mas não porque estou conectado com o mundo por meio das redes sociais. Não estou mais sozinho porque estou criando, anotando no bloco de notas, por assim dizer. Robert Frank, no seu decantado livro Os Americanos, tem aquela América dele e tem uma imagem que é o velho Ford parado no acostamento com a família — a mulher e o filhinho na janela do veículo. Me faz pensar que quando se viaja com alguém você viaja, também, essa pessoa. Estou me apegando à ideia romântica da criação.
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ENQUADRAMENTO E PRÉ-VISUALIZAÇÃO.
Existe uma qualidade que vem com o tempo e a experiência para o fotógrafo. Um atributo que se chama pré-visualização. Com a experiência, chegava-se a um patamar que se “sabia” o que se tinha capturado. Essa pré-visualização, tenho certeza, foi a primeira coisa que se perdeu na era digital. É uma pena. Outra coisa que caiu: o enquadramento. O enquadramento sempre foi, para mim, um dos pilares da grande fotografia.
O OLHAR DO FOTÓGRAFO.
Às vezes, eu pegava uma câmera e usava a mesma lente para fotografar um assunto recorrentemente. Uma Leica e uma lente de 35mm. Só. E isso era muito importante. Não era uma zoom. Era uma lente fixa. Eu começava a ir mais perto do assunto ou mais longe. E gostava de que aquele ensaio inteiro, umas 20 ou 30 fotos, tivesse sido feito com uma lente. Tinha muito orgulho daquilo porque ao fazer aquele trabalho inteiro com uma lente eu estava ensinando o meu olho a respeitar o equipamento. O meu pincel, a minha tela, as minhas cores, a minha palheta. Então, essa coisa de extrema grande-angular ou extrema teleobjetiva — e não estou dando aqui uma de purista ou de Cartier-Bresson, absolutamente —, nunca gostei. Hoje, me parece que se presta mais atenção no equipamento, no efeito, do que no olho do fotógrafo. Será que isso é old school ou sé- culo 20? Pode ser. Tanta coisa está acontecendo.
DIGITAL OU ANALÓGICA?
Eu observo muito, pois tenho um filho que é da geração millenium, muito próximo a mim o tempo todo. Sinto nele um desejo de voltar para o analógico. Não é um desejo gratuito só porque tem grão e é interessante. É mais pelo motivo de não ficar escravo da tecnologia. Explico. Quando punha um filme na máquina eu decidia antes se a foto ia ser preto e branco ou cor. No monocromático, geralmente, o fotógrafo tinha o seu filme favorito. O meu era o TriX. Eu expunha ele a 250 ou 320 ASA, hoje chamasse ISO. Sabia qual era o revelador, o tempo e a temperatura de revelação. Sabia tudo e sabia qual era cara dele no ampliador. Colorido tinham vários filmes. Você podia usar Kodak, Fuji ou Agfsa. Cada um tinha uma curva. Vamos chamar de curva. Cada um tinha uma cara. Um look. Então você escolhia a sua própria atmosfera.
A retórica da fotografia é a lente que você escolhe, é a textura do filme, é o contraste. São as ferramentas. O que a gente tem para contar a história. No meu livro Viagem à Liberdade fiz um ensaio no bairro japonês de São Paulo. Já estávamos na era digital. Eu estava começando a entender o que era fotografar nessa era. Vi que podia inventar um “filme”. Fazer algo que era o meu sonho e que não seria possivel na época do analógico. Então, através de pesquisas no Photoshop, criei um filme colorido com grão só para mim.
A NOVA GERAÇÃO.
Eu vejo na geração nova, dos 20 aos 30 anos, coisas incríveis e originais. Mas que, de certa forma, já foram feitas. Como tudo já foi feito. Só que o mundo mudou e eles estão olhando para um mundo novo. Portanto, o que eles fazem é novo. Na fotografia, você é o olho do seu pai, do seu avô, do seu bisavô e da sua cultura. Que é aquilo que eu chamo de tácito. Tenho uma pequena história sobre os dez dedos da mão para fazer um retrato. Cinco dedos são o que todo mundo pode imitar. Os outros cinco não dá, pois são suas referências únicas, o que você traz para dentro da fototografia.
Fotografia por Fran Oliveira | Matéria publicada na edição 104 da Revista Versatille