Lina Bo Bardi: a revolução na arquitetura brasileira
Arquiteta que revolucionou o cenário brasileiro, Lina Bo Bardi tem trajetória e conjunto de obras prestigiados pelo prêmio Leão de Ouro Especial
A revolução na arquitetura brasileira tem nome: Achillina Bo Bardi, ou apenas Lina. Com cabelos escuros e cacheados, sobrancelhas finas e lábios bem definidos, sua imagem representa um momento de virada na história, sendo uma das precursoras no desenho de edificações, móveis e da paisagem urbana.
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Nascida em 1914 em Prati di Castello, centro histórico de Roma, Lina Bo Bardi foi a primogênita de uma família genovesa de poucos recursos financeiros. Desde pequena, teve dificuldade em se adequar aos padrões que limitavam o papel da mulher na sociedade. Quando jovem, cursou o Liceo Artistico (escola secundária voltada para as artes) e formou-se pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma.
Em 1940, com a ascensão do fascismo em Roma, mudou-se para Milão. Lá, criou o estúdio Bo e Pagani, ao lado de Carlo Pagani, e trabalhou para inúmeras revistas de arquitetura e arte, incluindo a Domus, de Gio Ponti. Na metrópole, conheceu o jornalista e crítico de arte Pietro Maria Bardi, com quem se casou e viveu ao lado por todo o resto de sua vida.
Retornou a Roma com o companheiro em 1946. Mas não demorou muito para projetar seu novo destino, um lar além da Itália. Após se casar com Bardi, visitou o Rio de Janeiro e conheceu a cultura popular brasileira, pela qual ficou fascinada. Um ano depois, o empresário e político Assis Chateaubriand convidou seu marido para dirigir um novo museu de arte moderna e Lina para projetar a sede. Foi a oportunidade para fincar de vez suas estruturas no Brasil – sua “pátria de escolha”, como ela se referia – e encontrar uma nova potência para suas ideias. “Lina mudou o Brasil. Ela vem com o olhar estrangeiro para provocar um pensamento moderno no país”, afirma Waldick Jatobá, curador de design contemporâneo e diretor do Instituto Bardi. “Ela consegue valorizar todas as riquezas do país e estimular as pessoas a verem o que é próprio do Brasil.”
Em 1951, Lina naturalizou-se brasileira e completou seu primeiro projeto autoral, a residência do casal Bo Bardi no bairro do Morumbi, em São Paulo, conhecida como a Casa de Vidro. A construção, que parece flutuar sobre pilares em meio a uma floresta particular, tornou-se um marco arquitetônico da capital. Cuidadosamente planejado e plantado pela própria Lina, o jardim é uma expressão de amor pela natureza brasileira. A casa também servia como ponto de encontro para artistas e intelectuais, como o arquiteto Max Bill, o escultor Alexander Calder, o compositor John Cage e o cineasta Glauber Rocha.
São Paulo não foi a única capital brasileira agraciada pelo olhar de Lina. Em 1958, ela foi a Salvador para dar palestras na Escola de Belas-Artes da Universidade da Bahia e acabou recebendo um convite para dirigir o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA) e criar um projeto de restauração do Solar do Unhão. “Ela viajava muito para o Nordeste, o centro do Brasil e o exterior. Nessas visitas, explorava do mais simples ao mais sofisticado”, explica Jatobá.
De volta ao lar em 1966, retomou o projeto do Museu de Arte de São Paulo (Masp) na Avenida Paulista, reconhecido como um ícone da arquitetura brasileira. Ela própria escolheu o local e concebeu uma ideia clara para o projeto: simples, mas monumental. “Não procurei a beleza, e sim a liberdade. Os intelectuais não gostaram, mas o povo gostou”, diz ela, em documentário biográfico de 1993, dirigido por Aurélio Michiles.
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A mentalidade de Lina estava presente em tudo, até mesmo nos detalhes da vida cotidiana. Um exemplo disso é o fato de a Casa de Vidro não ter nenhum sofá. “Ela sempre gostou de ter cadeiras, pois é mais fácil de se juntar quando tem visita”, conta Jatobá. A arquiteta adorava cozinhar e recebia convidados em quase todos os fins de semana, para fazer pão e pizza nos fornos da residência. Outra grande paixão eram seus gatos. “Lina chegou a fazer um desenho de um felino no piso de concreto no fundo da casa, que secou e ficou lá. Dedicou a obra a Pietro, com quem tinha uma relação muito carinhosa.” Aliás, o apelido do marido era “meu gato”.
A italiana projetou o Sesc Pompeia, em 1982, e o Teatro Oficina, em 1990. Seus últimos anos de vida foram dedicados a uma pesquisa pela renovação arquitetônica no país pós-ditadura. Lina morreu em 1992, aos 78 anos, mas deixou um legado internacional que vive até hoje.
“Uma mulher que trabalhou em meados do século 20, em um ambiente machista. Lina se impôs por competência e profissionalismo”, afirma o diretor do Instituto Bardi. Para ele, o trabalho da arquiteta fascina pela multidisciplinaridade e pluralidade de expressão. “O pensamento dela sempre foi contemporâneo. Suas criações têm um traço de inventividade e modernidade.”
Neste ano, Lina Bo Bardi tornou-se a primeira mulher brasileira a receber (in memoriam) o prêmio Leão de Ouro Especial pela trajetória e conjunto de obras durante a 17ª Mostra Internacional de Arquitetura de La Biennale di Venezia, cujo tema foi “Como viveremos juntos?”. Para o curador Hashim Sarkis, Lina serve como inspiração para a construção da coletividade e a perseverança da criatividade em tempos difíceis.
Mesmo sendo estrangeira, Lina soube traduzir o Brasil para os brasileiros, com um olhar sensível e agregador. Sintetizando seu trabalho, ela reflete: “Há um gosto de vitória e encanto na condição de ser simples. Não é preciso muito para ser muito”.
Por Mattheus Goto | Matéria publicada na edição 120 da Versatille