John Coltrane: 55 anos de amor supremo

Num domingo de manhã do dia 15 de setembro de 1963, uma dúzia de bananas de dinamite foram colocadas por racistas brancos no subsolo de uma igreja batista em Birmingham, Alabama. Às 10h45 da manhã,

Num domingo de manhã do dia 15 de setembro de 1963, uma dúzia de bananas de dinamite foram colocadas por racistas brancos no subsolo de uma igreja batista em Birmingham, Alabama. Às 10h45 da manhã, as bombas explodiram matando quatro jovens negras com idade entre 11 e 14 anos. Por causa disso, Martin Luther King decidiu se lançar a uma não-violenta investida à cidade de Birmingham — que era o bastião da segregação racial americana. O massivo impacto desses protestos culminou com a marcha histórica de King para Washington.

 

Esses eventos em Birmingham levaram John Coltrane a compor a belíssima canção Alabama. Apesar de nunca ter se considerado um ativista político — ele sempre foi músico acima de qualquer coisa e uma pessoa, profundamente, religiosa —, Coltrane, com incrível senso de humanidade, foi levado a apoiar os direitos civis. Em 1964, ele tocou em oito concertos beneficentes em apoio a Martin Luther King.

 

Além da música Alabama, ele, inspirado por essa luta, também gravou Reverend King, Backs Against the Wall, além do álbum Cosmic Music, dedicado a Martin Luther King. John Coltrane, saxofonista de jazz morto, prematuramente, em 1967, aos 40 anos, deixou um importante legado musical, espiritual e social. Este ano, um dos discos mais expressivos, A Love Supreme, uma reza musical, completa cinco décadas e meia. Mas o conjunto da obra vai além.

 

Em 29 de junho de 1964, cinco meses antes de gravar A Love Supreme, John Coltrane havia ficado entristecido com a notícia de que o grande amigo, o multiinstrumentista Eric Dolphy, havia morrido num quarto de hotel em Berlim, na Alemanha. Dois meses depois da morte de Dolphy, nascia o primeiro filho, John William Coltrane, em 26 de agosto. Logo após o nascimento do filho, Coltrane havia sumido, voltando alguns dias depois com a obra completa de A Love Supreme, uma experiência com os ciclos da morte e da vida. Algo que, mais que uma produção musical, significou uma dádiva espiritual.

 

Gravada em dezembro de 1964, A Love Supreme é uma peça de 33 minutos dividida em quatro movimentos: Acknowledgment, Resolution, Pursuance e Psalm. Além de música e espiritualidade, foi, também, um tributo à amizade e ao talento de seus músicos: John Coltrane (sax), McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (contrabaixo) e Elvin Jones (bateria).

 

Para McCoy Tyner, nesse disco, a banda atingiu o ponto mais elevado. Musical, comunicativo e espiritual. Houve um estreitamento entre o jazz e o raga indiano, mas sem perder o estilo. No final de Acknowledgment, a banda repete o mantra A Love Supreme. Resolution é um tema mais frenético. Assim como Pursuance, que inicia com um bem executado solo de bateria de Jones, passa para a rapidez de McCoy Tyner, seguido pelo “nervosismo” do sax de Coltrane. A música termina com um solo de contrabaixo de Garrison. Psalms é quase uma reza. Uma meditação ao saxofone.

 

Esse amor supremo foi o que nos deixou John William Coltrane em sua obra musical. Nascido em 23 de setembro de 1926 na cidade de Hamlet, Carolina do Norte, ele foi influenciado pelos pais, ambos músicos. A mãe tocava piano e o pai, violino. Com a morte do pai, em 1939, ele e a mãe se mudaram para a Filadélfia, e, ali, Coltrane aprendeu clarinete e sax alto. Em 1942, estudou na William Penn High School, formando uma banda. A primeira aparição profissional foi em 1945, com a big band de Jimmy Johnson. Ainda nesse ano, convocado para a Marinha, tocou clarinete numa banda chamada Melody Masters. Ao retornar à Filadélfia, em 1946, foi, novamente, morar com a mãe e uma prima e passou a tocar sax alto na banda de Joe Web. Entre 1947 e 1948, participou do grupo de rhythm and blues de King Kolax e Eddie Vinson. De 1949 a 1951, esteve com Dizzy Gillespie; em 1952, com Earl Bostic; e em 1954, com Johnny Hodges.

 

Clique nas imagens para ampliar

 

RENASCIMENTO ESPIRITUAL

Nesse período, Coltrane teve sérios problemas com heroína e álcool, sendo demitido de várias bandas, inclusive da de Dizzy Gillespie. Quem o acolheu, por já ter sido viciado e entender o problema, foi Miles Davis. Mas a situação de Coltrane era tão complicada que, até, Miles o demitiu em 1957. Ele ficou alguns meses com o pianista Thelonious Monk e, a duras penas, tratou de se livrar das drogas.

 

Depois de já ter atingido o fundo do poço, ele tratou de resolver a situação. Trancou-se num quarto e, por duas semanas, aguentou firme a retirada da heroína. Sobre essa experiência, ele escreveu: “Experimentei, pela graça de Deus, um renascimento espiritual que me guiou para uma vida rica, resolvida e mais produtiva. Em agradecimento eu, humildemente, pedi para que me fossem dados os recursos e os privilégios para realizar outras alegrias por meio da música”. Ele nunca mais usou drogas ou álcool e resolveu explorar algumas religiões do planeta, o islamismo, por exemplo. Então, fez uma viagem para a Índia e conheceu o Bagavad-Gita (“O Canto do Bem-Aventurado”), episódio do Mahabarata em que Krishna, a encarnação de Vishnu, ensina Arjuna a livrar-se da inquietação espiritual, pela meditação e a devoção.

 

Coltrane foi, novamente, chamado por Miles, projetando-se, definitivamente, para o cenário jazzístico. Esteve com o trompetista de 1958 a 1960 e, em 1959, ao lado de Cannonball Adderley (sax alto) e Bill Evans (piano), participou da gravação de Kind of Blue, um dos trabalhos mais importantes e influentes de Miles Davis. Mesmo tocando em outras bandas, “Trane”, como ficou conhecido, desenvolvia, paralelamente, a carreira-solo. Ele já havia composto grandes obras como Dakar (1957), Blue Train (1957), Lush Life (1957/1958), Soultrane (1958), The Stardust Session (1958) etc. Até essa fase, a inspiração e a orientação musical vinham de Dizzy Gillespie e Charlie “Bird” Parker. “Foi por meio do trabalho de Gillespie e ‘Bird’ que eu comecei a aprender sobre estruturas musicais e outros aspectos teóricos da música”, diz John Coltrane.

 

CRIADOR DE UM ESTILO

Passando do sax tenor para o soprano, ele rompeu com as influências anteriores e criou o próprio estilo, que recebeu o nome de sheets of sound (lâminas sonoras), pois a linha melódica era mais uma massa contínua de sons do que uma sucessão de notas isoladas. Ele modificou as sequências harmônicas, comprimindo, no espaço de um acorde, três ou quatro acordes — procedimento mais comum entre os pianistas. Dessa nova fase, em 1959, Coltrane apresenta o maravilhoso Giant Steps. Uma das músicas mais bonitas é Naima, feita para a primeira esposa.

 

Em 1960, ele grava My Favorite Things com novo grupo: o pianista McCoy Tyner, o contrabaixista Steve Davis — substituído por Jimmy Garrison — e o baterista Elvis Jones. Essa nova banda transforma My Favorite Things, de Rodgers e Hammerstein, um, apenas bonito, standard de jazz, num show de 13 minutos. O ouvinte é brindado com solos magistrais de Coltrane ao sax soprano, o piano de McCoy Tyner e a cozinha perfeita de Garrison e Jones. Com a mesma formação sai Coltrane (1962), Crescent (1964) e A Love Supreme (1964).

 

Em 1965, ele reformulou a banda. Entraram o saxofonista Pharoah Sanders, a pianista Alice Coltrane (segunda esposa) e o baterista Rashied Ali. Dentre outras produções, destaque para Live at Village Vanguard Again! (1966) e Interstellar Space (1967). A morte prematura, em 17 de julho de 1967, aos 40 anos, determinou uma das maiores perdas para o jazz.

 

Perfil por Manrico Patta Neto | Matéria publicada na edição 110 da Revista Versatille

 

Para quem pensa em ir para o Japão em busca de uma nova vida, também poderá procurar empregos aqui.