“Eu penso que a literatura pode ser um abraço”, diz Vanessa Reis, autora do romance “Interseção”
Em entrevista, a escritora fala sobre sua trajetória, a relação com seu livro e a importância de histórias com protagonistas PCDs no universo dos romances
Criada por seus avós, a baiana Vanessa Reis sempre esteve próxima à literatura. Como filha de professora, os livros fizeram parte de seu cotidiano desde pequena, e sua criatividade foi incentivada não apenas em casa, mas também na escola, onde fazia textos para feiras culturais e adaptações de peças clássicas.
Uma de suas memórias favoritas é de uma apresentação que fez na quarta série. “Estávamos falando sobre as épocas através da música e eu fiquei com Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, só que eu estava doente – tinha saído do hospital apenas para participar da apresentação – e falava “mas estou triste, triste, não quero cantar Alegria, Alegria” (risos). É muito vívido na minha mente, lembro que a plateia cantou comigo. Ali, eu percebi o poder de comunidade, das pessoas. O poder dos fios soltos que, quando juntos, se transformam em rede”, relembra a autora, em entrevista para a Versatille.
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Vanessa é pessoa em cadeira de rodas, servidora pública e, na parte da tarde de seus dias, escritora de romances. Interseção é sua primeira história publicada de forma tradicional. “Fico feliz de ver um selo como a Verus, a casa dos romances, escolher esta história específica para distribuir e colocar nas livrarias do Brasil inteiro” conta Vanessa. “Espero que ele não seja o único, apenas o primeiro de muitos que virão de outras pessoas. O início de uma corrente.”
Confira, na sequência, a entrevista.
Versatille: Como você começou a escrever?
Vanessa Reis: A descoberta da minha deficiência foi gradual durante a infância, eu passava muito tempo em casa e cresci cercada por adultos. Ficava com meus avós, porque minha mãe trabalhava em dois turnos e meu pai é caminhoneiro, sempre esteve na estrada. Meu avô era aposentado, então estava ao lado de um senhor que assistia a jornal e futebol o tempo todo. Sempre tive livros em casa e, desde muito nova, gostava de inventar histórias, minha imaginação corria solta. Na escola, ao perceber que eu gostava de criar, a professora de literatura me deixava responsável por fazer os textos das feiras culturais, dos casamentos juninos e das adaptações, como Sonho de uma Noite de Verão. Eu fui muito incentivada a escrever por todos os lados.
V: Você já publicava histórias de forma independente. Como foi saber que o Grupo Record gostaria de lançar seu romance?
VR: Achei que era trote! (risos). Recebi um e-mail da Rafaela [Machado, sócia do Grupo Record] e, quando eu li, pensei que não era possível, eu não respondi. Estava conversando com a Gabriela [Graciosa], uma amiga que vai ser publicada neste ano também pela Verus, que me disse: “Amiga, mas pode não ser trote, ela está falando de Interseção”. Uma semana após eu responder, já estava com o contrato assinado. Nunca tive a pretensão de lançar um livro físico, escrevo independentemente se será publicado de forma tradicional ou não. Eu não precisava que um livro físico validasse a minha escrita, mas fico muito feliz que tenha acontecido, porque alcançou muita gente, chegou muito mais longe.
V: Como está sendo para você a aceitação do público com a história de Interseção?
VR: Estou muito feliz, primeiro porque eu não esperava que uma protagonista PCD chegasse tão longe, principalmente para pessoas que não têm deficiência. Me alegra perceber que os leitores estão colocando cada vez mais uma literatura diversa nas suas listas, que a diversidade de corpos e sotaques está sendo vendida como literatura. Fiquei com medo da equipe de revisão da editora cortar meu sotaque baiano da história, mas me falaram “de jeito nenhum”.
V: A Catarina é uma mocinha “bocuda” e sincera, que tem atitude. Como foi o processo de criar a personagem?
VR: Posso dizer que eu só parei para escrever Interseção porque a Catarina estava gritando dentro da minha cabeça, ela já nasceria metendo o pé na porta, se ela tivesse o movimento das pernas (risos). A primeira coisa que eu tenho em mente quando crio um personagem PCD é que ele fuja dessa visão de que pessoas com deficiência são anjos ou infantilizados. Sempre gosto de trazer uma chatice. A Catarina vive em um ambiente de trabalho em que nem sempre a mulher é ouvida ou levada a sério, então coloquei ela para ser tinhosa, “poucas ideias”, mas ao mesmo tempo ela não consegue ser tinhosa em todos os âmbitos de sua vida. Construí essa dualidade para ficar mais crível.
V: Sendo também servidora pública, você transformou a Catarina em uma. Por que decidiu dar a ela essa profissão?
VR: Não tem nada mais brasileiro do que trabalhar como servidor público. Alguém do seu círculo social é concursado ou é concurseiro. Catarina já nasceu com o propósito de ser servidora. Consegui emprestar doses de realidade por ter essa vivência há quase nove anos. As ideias de Catarina no livro são ideias que eu já tive. O projeto de utilizar contos de fadas para trabalhar com crianças foi implementado dentro do programa Minha Casa, Minha Vida; a ideia dos fornos solares é minha também, mas não foi para a frente porque era muito dinheiro para, talvez, pouco resultado.
V: Catarina tem uma ligação muito forte com a religião cristã. Essa crença faz parte da sua vida?
VR: Faz muita. Fui criada dentro da Igreja Batista. Muitas das conversas que Catarina tem com Deus eu emprestei da minha relação, pois o vejo como um amigo, não o coloco dentro de uma caixinha como se fosse intocável. Queria também desconstruir essas relações com a religião, é algo tão particular. As pessoas tentam transformar em uma coisa padronizada e, se você não viver desse jeito, é invalidada.
V: Como você vê a importância de um livro com uma protagonista PCD e escrito de uma forma que não o coloque dentro dos preconceitos?
VR: É difícil ver um livro escrito por uma pessoa com deficiência e protagonizado por um personagem PCD, ainda mais uma comédia romântica, publicado de uma forma tradicional. Quero sempre bater nessa tecla: PCD começa com “P” de pessoa e não com “D” de deficiência. É alguém vivendo sua vida de forma normal, a gente só precisa que seja respeitado o nosso tempo. A única coisa que a gente supera é o capacitismo. Tento fugir ao máximo das histórias de superação, em que as outras partes da vida da pessoa são acessórios. Se alguém estiver procurando isso não vai encontrar nas minhas histórias.
V: O que você espera que o leitor sinta ao ler sua obra?
VR: Acho que a gente vive em uma sociedade que está dando dois passinhos para trás em vários sentidos, então eu penso que a literatura pode ser um abraço. Espero que o leitor consiga se identificar tanto nas relações amorosas como nas de amizade, nas relações familiares. Espero que encontre um companheiro pelo período em que estiver lendo.
Por Marcella Fonseca | Matéria publicada na edição 135 da Versatille