Como a Burberry construiu sua trajetória atemporal na moda

Fundada em 1856, a marca tem seus principais pilares ligados a questões como a força de seus códigos visuais e a sua essência de adaptação

(Foto: Divulgação)

“O xadrez Burberry Check é tão reconhecível quanto a garrafa de Coca-Cola”, disse a CEO da Burberry entre 1997 e 2005,  Rose Marie Bravo, em uma entrevista ao The New York Times, publicada em janeiro de 1999. O mais curioso é que, apesar de parecer uma criação súbita e com fins comerciais, a origem desse símbolo tão identificável aconteceu de forma orgânica e está atrelada às principais características que marcam a história da Burberry: disrupção, adaptabilidade e funcionalidade das roupas. Dessa forma, é impossível falar do xadrez Check sem relembrar o desejo do fundador de ultrapassar limites.

 

A marca foi fundada pelo inglês Thomas Burberry, em 1856, quando tinha apenas 21 anos. Ele era filho de fazendeiro e cresceu imerso na zona rural de Surrey, no sudeste da Inglaterra, que ficava a cerca de 80 quilômetros de Basingstoke, cidade mercantil onde se iniciou a Burberry. O clima britânico, bastante chuvoso, foi essencial para definir a abordagem da empresa; afinal, ele refletia as necessidades dos primeiros clientes. A maioria trabalhava no ramo da agricultura, como seu pai, e buscava vestimentas que fornecessem algum tipo de proteção contra as tempestades. As próprias experiências de Thomas, durante sua criação no meio rural, moldaram sua concepção sobre o que as roupas deveriam oferecer aos britânicos: praticidade, eficiência e um escudo contra elementos incertos.

 

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À medida que o negócio crescia, a companhia passou a diversificar, na década de 1870, a oferta de produtos. Além de tecidos e roupas, havia disponíveis calçados, móveis e utensílios domésticos. Passaram-se 23 anos desde a fundação da empresa até a invenção mais famosa do criador, em 1879: o tecido gabardina. A intenção era desenvolver um material que se adaptasse tanto às variações climáticas quanto às necessidades do corpo. Criado a partir de algodão egípcio com uma trama aberta que permite que o corpo “respire” ao mesmo tempo em que repele a água, ele revolucionou as roupas impermeáveis e fortemente emborrachadas da época, que eram pesadas, rígidas e desconfortáveis.

 

A genialidade de Thomas Burberry foi unir a solução para práticas cotidianas − ao garantir liberdade de movimento e proteção − com estilo e elegância. Assim, ele deixou de vender apenas para agricultores e moradores locais e passou a fornecer vestimentas a desbravadores. A trajetória inicial da empresa ocorreu no século 19, um período de turbulência − devido à Revolução Francesa − e mudanças, tanto de valores sociais quanto de limites geográficos e demandas da população. Ao fazer parte disso, o empresário desejava inserir em suas roupas essa essência disruptiva, que incentivasse o ato de ir além. As peças da Burberry, então, tornaram-se aliadas dos exploradores pioneiros que se aventuravam pelos extremos polares e picos elevados, entre outros ambientes naturais. 

 

Ilustração do século 20 que mostrava a ideia de exploração de ambientes naturais (Cortesia da Burberry)

 

O primeiro passo para a criação do icônico trench coat havia sido dado. Ao contrário da gabardina, esse casaco não foi simplesmente criado, mas sim desenvolvido com o passar do tempo. Suas origens estão ligadas a um casaco chamado Tielocken, inventado nos últimos anos do século 19 e patenteado por Thomas Burberry em 1912. O modelo evoluiu rapidamente ao longo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), à medida que necessidades surgiam em meio às circunstâncias mais extremas. 

 

O casaco recebeu seu nome (que em português remete a ideia de “trancado”) em vista do cinto e do fecho, que faziam o indivíduo se sentir “preso” na roupa, por ser muito resistente. O modelo foi pensado para que seu uso fosse simples: em vez de apresentar diversos botões, era fechado apenas com um, no cinto. O design aerodinâmico garantia destreza e velocidade, particularmente aplicáveis no campo de batalha. Além de sua extrema funcionalidade, o visual era elegante. “Security and distinction” (Segurança e distinção), inclusive, foram as palavras que intitulavam um anúncio do modelo, de 1916, de modo a enfatizar que nenhum dos dois precisa ser sacrificado pelo outro. A gola virada para cima do Tielocken até se assemelha ao famoso modelo The Burberry, usado e batizado pelo rei Edward VII.

 

O casaco precursor apresentava muitos dos elementos instantaneamente reconhecíveis do trench coat, como a gabardina, os cintos laterais, a parte das costas que forma lapelas, o caimento natural no corpo, os bolsos generosos, a rotação das mangas e o corte que facilitava o movimento. A partir das necessidades dos militares, foram adicionadas, por exemplo, as dragonas (peça metálica ornada com franjas de fios de seda ou ouro, usadas como distintivo nos ombros do uniforme militar), onde eram suspensas luvas ou apitos. Embora o casaco cumprisse com maestria sua função de traje militar, ele não precisou de muitas mudanças para se adaptar à vida cotidiana.

 

Originalmente conhecido como Burberry Trench Warm, com um forro removível feito de lã de camelo, a peça se destacava pela versatilidade e capacidade inovadora de ser desconstruída e usada de várias formas (capa externa de gabardina sozinha, a parte de lã como um aquecedor e ambos combinados). Finalmente amadurecido, o trench deu origem, em 1920, ao icônico xadrez Burberry Check, que estampava o forro do casaco. Apesar de terem aparecido outros xadrezes em diferentes designs e tons, esse em específico, o tipo tartan escocês, com base bege e linhas pretas, vermelhas e brancas, se tornou rapidamente icônico. Em 1965, um em cada cinco casacos exportados da Grã-Bretanha era da Burberry, forrado com o xadrez Check. 

 

A transição que fez a estampa aparecer não somente dentro dos trench coats, mas em outras peças, aconteceu por acaso. No fim da década de 1960, uma compradora da loja da Burberry, em Paris, Jacqueline Dillemman, removeu o forro Check de um casaco e o exibiu como capa de guarda-chuva, um acessório tipicamente britânico. Esse ato inusitado e criativo abriu um novo caminho para a grife, que em meados da década de 1970 passou a apresentar o exclusivo xadrez em uma seleção de produtos variados. O famoso cachecol Burberry Check, de caxemira, foi um deles. Hoje, ele é criado em colaboração com a fábrica de lã Johnstons of Elgin e produzido em Moray, no norte da Escócia. 

 

O modelo Jermaine Ampomah na campanha de outono de 2017 da Burberry, com styling de Ib Kamara (Kristin-Lee Moolman)

 

Como a estampa se popularizou entre a elite britânica, o xadrez consequentemente se tornou um símbolo de status. No fim dos anos 1970 e 1980, o estilo Sloane Ranger, caracterizado por uma estética clássica, como a de Lady Di, comum entre os membros da classe alta, ganhou destaque. A Burberry, entre outras marcas de luxo, era a favorita desse grupo. À medida que marcas de luxo renomadas se tornaram sinônimo de sucesso financeiro, as classes mais baixas passaram a adquirir produtos que apresentassem logos dessas grifes. Os punks, por exemplo, usavam o trench coat nas décadas de 1970 e 1980 como um ato de rebeldia em relação às convenções de vestimenta e gosto, combinando o casaco, mais minimalista, com calças bondage e jeans rasgados. 

 

Embora inicialmente o movimento parecesse negativo ao contrapor a maneira com que a grife havia se estabelecido, na realidade, ele se conectou à essência disruptiva da marca e se tornou até mesmo uma fonte de inspiração. Afinal, tal atitude nada mais era do que o famoso high-low e a mistura do clássico com street style. Na década de 1990, inclusive, tornou-se símbolo do Cool Britannia − período de crescente orgulho no Reino Unido, inspirado na cultura pop dos anos 1960 −, usado por figuras como Liam Gallagher, da banda Oasis.

 

Modelo e ativista Adwoa Aboah e sua família em Ghana, parte da campanha da pré-coleção de outono/inverno de 2018 (Juergen Teller)

 

É, portanto, inquestionável a relevância dos códigos visuais permanentes na construção da Burberry, mas a capacidade de adaptação é o que forma sua essência. Desde os trabalhos iniciais de Thomas Burberry até a liderança dos diretores criativos da marca no período mais recente, como Christopher Bailey, Riccardo Tisci e, agora, Daniel Lee, o trench coat e outras peças icônicas apareceram de formas diferentes, sempre conectadas com a identidade dos períodos históricos. É justamente essa união da transformação com a atemporalidade que faz a Burberry ser uma marca tão forte. 

 

Nas páginas, 165 anos de marca

 

A Burberry acaba de lançar um livro com a editora Assouline. Nas páginas, toda a trajetória da grife inglesa, com textos do jornalista especializado em moda Alexander Fury e curadoria e prefácio de Carly Eck.

(Cortesia da Burberry)

 

Por Laís Campos | Matéria publicada na edição 130 da Versatille

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