Arte com alma: entenda a volta do crochê

A subjetividade e o afeto familiar presentes no crochê trazem à tona a técnica antiga que conecta gerações

Peças de crochê do Ateliê Mão de Mãe
Peças de crochê do Ateliê Mão de Mãe (Divulgação)

Em meio a tempos de incerteza, impermanência, rapidez e movimentos de massa, reconectar-se com as origens, recuperar a subjetividade e encontrar o que é perene parece ser um acalento. E o que há de mais reconfortante do que um crochê, que lembra a casa e as roupas de uma avó? Com nome derivado da palavra francesa crochet, que significa “gancho” – referente ao formato da agulha utilizada na confecção desse tipo de artesanato –, a técnica é repleta de história e identidade e tem exercido um papel relevante para as gerações atuais.

 

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É difícil traçar sua origem exata, mas possível indicar momentos e cenários marcantes em sua trajetória. Um de seus apogeus ocorreu no século 19, quando houve uma valorização de trabalhos, na contramão do processo de industrialização, por conta do movimento Arts and Crafts (Artes e Ofícios, em tradução livre), surgido na Inglaterra. “É uma atividade manual, em teoria feminina. A partir do período vitoriano, especialmente, o crochê esteve muito em alta, tanto em detalhes da indumentária (arte relacionada ao vestuário) quanto na decoração”, explica João Braga, professor de história da moda na Fundação Armando Alvares Penteado. Nesse contexto, além de cumprir a função estética, a técnica também era uma fonte de renda.

 

 

Outro cenário que está diretamente ligado ao crochê é a zona litorânea. Segundo Braga, a técnica fica em maior evidência nessas regiões porque também é utilizada para produzir redes, as quais apresentam tecidos com pontos abertos que permitem à água passar e, dessa forma, capturar o peixe. “As técnicas de fazer rede são tão antigas quanto se tem notícia de populações ribeirinhas, devido à pesca.” Em vista disso, o aperfeiçoamento do crochê não depende necessariamente do tempo, mas sim do contexto em que está inserido. “Vai variar de acordo com a cultura, criatividade ou povo. As mãos que trabalham acabam descobrindo de repente um ponto novo que vai formar uma flor diferente, um pássaro, o desenho que for.”

 

Da esquerda para a direita: Thássia Naves, Silvia Braz, Nati Vozza e Lele Saddi  em uma “coincidência fashion”: todas  usam diferentes estilos de crochê

Da esquerda para a direita: Thássia Naves, Silvia Braz, Nati Vozza e Lele Saddi em uma “coincidência fashion”: todas usam diferentes estilos de crochê (Reprodução)

 

 

Como um resgate da história e conexão entre gerações, é possível observar a valorização do artesanato na modernidade, principalmente entre os mais jovens. Braga explica que o fato não está relacionado somente às premissas sustentáveis, mas também ao diferencial que as peças trazem com a subjetividade do processo de produção, o que permite identificações. Mais uma vez, a essência do crochê encontra seu momento de brilhar: “O artesanato não tem o compromisso de mudança com regularidade. Ele pode se atualizar de tempos em tempos, mas precisa manter sua identidade para que a referência não se perca no mundo contemporâneo nem seja aniquilada pela produção industrializada, e, dessa forma, possa ser passada como tradição de mãe para filha”, conclui.

 

Veja, a seguir, marcas de crochê com propostas diferentes, mas unidas pela herança familiar e produção com afeto.

 

Ateliê Mão de Mãe

 

Como o nome já diz, o Ateliê Mão de Mãe surgiu a partir de relações familiares, mais especificamente de uma necessidade. “Minha mãe, Luciene, sempre foi artesã: fazia colares, brincos, pulseiras, entre outras coisas. Eu cresci acompanhando-a como mãe solteira tentando vender trabalhos que ela levava horas para produzir, mas era obrigada a vender muito barato para manter a mim e minhas irmãs, já que as pessoas não queriam pagar o valor real”, diz Vinícius Santana, diretor criativo e fundador da marca. Com as restrições impostas pela pandemia, sua mãe não pôde mais expor as peças e ele foi afastado do trabalho como vendedor de uma loja de shopping. Assim nasceu o Ateliê, em fevereiro de 2020, com postagens no Instagram dos produtos criados por Luciene.

 

 

 

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Uma publicação compartilhada por AMM (@ateliemaodemae)

 

No início, o destaque não era o crochê, mas, quando Santana percebeu que o interesse pelo estilo era crescente, incentivou sua mãe a produzir com o foco. Ele levava referências, mas a criatividade da artesã transcendia: “Ela mudava completamente tudo”, conta. Cores, modelagens e aviamentos – materiais usados para complementar as peças – eram reformulados totalmente. Luciene utilizava, por exemplo, búzios e miçangas de madeira no crochê, o que contribuiu para a criação de uma identidade única.

 

Após alguns meses no comando da marca, Santana se juntou a Patrick, seu sócio atual, e ambos passaram a compartilhar ideias para agregar valor às peças: “Eu queria mostrá-las de uma forma chique, que fizesse as pessoas valorizarem e enxergarem o crochê além do beachwear e das roupas de feirinhas, mas como algo sofisticado para usar em qualquer momento”. A inspiração para as coleções femininas e masculinas é a cidade natal da marca, Salvador; o Nordeste, em geral; e a ancestralidade e religiosidade dos fundadores, provenientes do candomblé.

 

Ateliê Mão de Mãe

Ateliê Mão de Mãe (Reprodução)

 

A história e o diferencial da marca levaram o Ateliê a ser convidado para participar da São Paulo Fashion Week, por meio do Projeto Sankofa, que tem como intuito incluir marcas afro-indígenas racializadas no evento, composto majoritariamente de marcas brancas. A primeira aparição foi em 2020, digitalmente, e depois em 2021, em um desfile presencial. Hoje, a empresa possui, além do e-commerce, um espaço físico em Salvador destinado a visitas com horário marcado e participa de diversas feiras, bem como do hub criativo Nordestesse. “O crochê veio para fazer essa intervenção na moda e conscientizar as pessoas a usarem e enaltecerem o trabalho artesanal, porque ser sustentável não se trata só de adquirir produtos de menor impacto, mas valorizar toda uma cadeia produtiva”, conclui.

 

ColoridoEclético

 

Cris Vasconcellos é uma pioneira no crochê colorido. Por volta de 2011, fundou sua loja ColoridoEclético e criou uma página no Flickr – rede social de compartilhamento de fotos, popular anteriormente – para divulgar seu trabalho. O sucesso veio, principalmente, a partir de uma criação revolucionária: um fractal (estrutura geométrica em que cada parte é semelhante à forma como um todo) repleto de cores. “Essa peça, nesse formato, existia em branco. Eu comprei a receita e resolvi fazer cada haste de uma cor. Ninguém fazia nada colorido daquele jeito. Antes, eu mesma só via toalhinha de crochê branquinha, rosinha etc. Eu postei no Flickr e lá consegui mil visualizações, o que era um estrondo para a época.”

 

 

Cris montou então uma página no Facebook, onde seus posts viralizaram. Infelizmente, a plataforma prejudicou o engajamento por conta de um sorteio realizado, o que a fez, posteriormente, direcionar seu foco ao Instagram. Embora seja uma usuária menos assídua, ela possui um perfil da marca em diversas outras redes, como YouTube, Twitter, Tumblr, TikTok, e até um blog, em que costumava compartilhar inspirações e conteúdo sobre crochê. Em seu e-commerce, há receitas (que incluem uma parte descritiva e um gráfico com os pontos) de diferentes produtos, como mandalas, trilhos e centros de mesa – todos coloridos, é claro –, bem como kits e acessórios para praticar o trabalho manual.

 

Trabalho de crochê do ColoridoEclético

ColoridoEclético (Divulgação)

 

Apesar de ter no crochê sua fonte de renda, a profissão nasceu de um hobby, uma paixão herdada de sua mãe. “A vida inteira eu fiz artesanato. Aprendi crochê com ela quando tinha 8 anos. Lembro até hoje a primeira peça que fiz: uma lã azul-clara. Ela me ensinou a fazer ponto baixo, mas não os aumentos – que moldam o tamanho da peça–, aí eu fui fazendo e virou um gorro para a Susi, não era nem para a Barbie”, relembra Cris.

 

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O gosto levou ao aprendizado e, consequentemente, à criatividade. “No começo da loja, eu vendia as peças prontas. É um saco! Eu não gosto de fazer a mesma coisa sempre, eu gosto de ficar inventando coisas novas. Minha cabeça fervilha de ideias o tempo todo”, diz. Cris é uma incessante pesquisadora de crochê e explica que os insights surgem de um conhecimento prévio. “Você guarda 1 milhão de referências e, quando tem uma ideia, sabe que viu aquilo em algum lugar. Você pensou naquilo, misturado com outra coisa que está dentro de você. A inspiração vem de uma biblioteca interna”, conclui a crocheteira, posicionada à frente de uma estante repleta de livros de crochê. 

 

Por Laís Campos | Matéria publicada na edição 125 da Versatille

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