Afrofuturismo cria nova ótica para discussões raciais nas artes; entenda o movimento

Literatura, música, moda, ciência e tecnologia dão vida ao afrofuturismo na construção de um mundo ideal para pessoas pretas

Afrofuturismo em Black Is King, de Beyoncé
Cena do filme Black is King, da Beyoncé (Reprodução)

“O mundo de amanhã será a África.” A afirmação de 2016 do filósofo camaronês Achille Mbembe, estudioso do pós-colonialismo, tem como base sua projeção numérica da população mundial. Dentro dos próximos 30 a 50 anos, uma em cada três pessoas será africana ou afrodescendente.

 

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O futuro até pode ser um mistério, mas já está sendo desenhado. Tem cores, códigos e propósitos que vão além do plano sensível. Ganha vida por meio da literatura, da música, da moda, das artes, da ciência e da tecnologia. Atende às demandas da população cujos direitos foram renegados por séculos. Chama-se afrofuturismo.

 

O movimento, nominado em 1993 pelo crítico cultural Mark Dery, tem o propósito de criticar dilemas atuais vividos por negros, analisando, questionando e revisitando fatos históricos. Em um artigo de 1996, a antropóloga Ronilda Ribeiro afirma que, para os africanos, a “esteira do tempo move-se para trás mais do que para a frente”. Dessa forma, as experiências do passado servem como referência para os momentos presente e futuro.

 

Pantera Negra

Cena do filme Pantera Negra (Reprodução)

 

Uma obra precisa cumprir cinco requisitos para ser considerada afrofuturista: autoria negra, afrocentricidade como eixo estético-político-filosófico, protagonismo negro em um cenário tecnológico, temática da negritude e o objetivo de reconstruir lacunas provocadas pelo racismo.

 

Uma das principais referências no assunto é a escritora Octavia Butler, autora de Kindred: Laços de Sangue, pioneira do movimento e considerada sua madrinha. Outra teórica de destaque é a filósofa americana Angela Davis, que fala em seus artigos sobre a construção do futuro e a luta pela liberdade.

Artes pretas

Visualmente, o afrofuturismo se traduz em práticas de colagem, grafite e pintura que remontam à arte africana e à ficção científica. Traços realistas, cores fortes e metalizadas, tecnologia e misticismo são os fatores característicos de destaque.

 

Na literatura, os autores utilizam o gênero especulativo para levar o leitor a uma viagem no tempo. “Não é meramente o processo de colocar pessoas negras em um cenário distópico, em uma batalha espacial. A temática da negritude é extremamente importante”, explica o escritor e pesquisador Waldson Souza. “Nós partimos de referências negras, vamos contra o discurso colonial e eurocêntrico. Somos a contranarrativa de histórias que são sempre repetidas.” Autor do livro Oceanïc, Souza pontua que os pilares do texto afrofuturista são a construção das personagens, o estilo, a linguagem e as discussões.

 

Waldson Souza escreve livros sobre afrofuturismo

Waldson Souza é autor do livro Oceanïc (Divulgação)

 

“O mercado literário brasileiro é majoritariamente branco. Precisamos valorizar a autoria negra”, diz o pesquisador. De acordo com ele, o cenário apresenta uma melhora tímida com o crescimento da produção no Brasil. Além de nomes consagrados na cena, como Fábio Kabral e Lu Ain-Zaila, novos talentos estão emergindo, como Stefano Volp, Lavínia Rocha e o próprio Souza. A editora Kitembo também tem se dedicado à publicação de literatura fantástica e especulativa feita por jovens negros. 

 

“A premissa é empoderar pessoas negras com a própria história e sua perspectiva”, comenta Lu Ain-Zaila. Em um conto presente na coletânea Sankofia, a escritora narra a história de uma cápsula espacial que volta ao planeta Terra, levantando uma discussão sobre a relação entre cultura, raça e tecnologia. “Não precisamos nos adaptar a outras culturas. Também temos histórias para contar.”

 

Lu Ain-Zaila é consagrada pelo afrofuturismo

Lu Ain-Zaila é um dos nomes consagradas na literatura afrofuturista nacional (Divulgação)

 

Outra dimensão do movimento, a música, também segue os mesmos caminhos. “Não existe um estilo de música afrofuturista, existe uma forma de pensar e comunicar os ideais”, afirma o músico Jonathan Ferr, que se define como um pianista afrofuturista. Sua canção Sonhos começa com o famoso discurso de Martin Luther King, de 1950, no qual ele imagina um futuro em que pessoas brancas e pretas se sentassem lado a lado. Em seguida, apresenta corais e instrumentos de cordas. “Sempre levo a música para um lugar de paisagem sonora, para que as pessoas fechem os olhos e sejam levadas pelo som”, explica Ferr. “Incorporo no meu trabalho uma fusão de jazz, hip-hop e música clássica para passar a mensagem de que o futuro está aqui.”

 

Uma fonte de inspiração para o pianista é o americano Sun Ra (1914-1993), considerado o pai do movimento. “Ele criou uma narrativa imagética de que nós vínhamos do espaço e para lá voltaríamos. De que éramos seres originários de Saturno”, conta. O último single de Ferr é, inclusive, uma homenagem ao músico e traz o nome do planeta como título.

 

Afrofuturismo está presente na música de Jonathan Ferr

Jonathan Ferr se autodenomina como pianista afrofuturista (João Victor Medeiros – styling por Denise Salles e produção por Tânia Artur)

 

O artista carioca, que já tocou no palco do Rock in Rio, afirma: “Meu objetivo [com a música] é curar. Quero que minha música seja um canal para que as pessoas se conectem consigo mesmas e com suas divindades”.

 

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Afrofuturismo pop

O afrofuturismo chegou a Hollywood. É o caso dos filmes Pantera Negra e Corra! e dos álbuns Black Is King, de Beyoncé, e Dirty Computer, de Janelle Monáe. As quatro obras percorrem cenários distópicos, com pessoas pretas no eixo central da narrativa.

 

Afrofuturismo de Dirty Computer, de Janelle Monáe

Cena de Diirty Computer, que Janelle Monáe lançou para o álbum homônimo (Reprodução)

 

Sobre a popularização do movimento, Waldson Souza faz uma ressalva: “É importante entender que a representatividade não pode ser meramente cosmética e estética. Precisamos ter em vista quem são os produtores e qual é a relevância da temática. A discussão é essencial”.

 

Sun Ra é um dos mestres da música afrofuturista

Apresentação de Sun Ra em londres, em 2010 (Getty Images)

 

O escritor destaca que o afrofuturismo não é apenas sobre raça, mas sobre identidades múltiplas. Ele cita o conceito
idealizado pela escritora Chimamanda Ngozi Adichie, autora do livro O Perigo de uma História única, que fala sobre como nosso conhecimento é lapidado pelas histórias que nos acostumamos a ouvir e como isso pode acarretar no apagamento das narrativas negras.

 

Por outro lado, Souza vê com bons olhos o surgimento de mais obras afrofuturistas. “A partir do momento em que a gente nomeia a realidade, pode falar sobre ela e produzir pensamentos, teorias.” Quando ele começou a pesquisar sobre o assunto, em 2016, havia pouco material no Brasil. O livro Kindred, de Octavia Butler, por exemplo, demorou quase 40 anos para ser traduzido para o português. “Quanto mais pessoas puderem acessar obras como essa, mais facilmente poderemos construir o futuro.”

 

No último ano, o afrofuturismo ganhou ainda mais relevância, como explica Lu Ain-Zaila. “No processo da pandemia, as pessoas negras têm sido as mais afetadas, já que moram na periferia”, diz. “Agora temos a chance de contar histórias e ficcionalizar sobre isso, para que as pessoas compreendam que o racismo não pode ser normalizado. O afrofuturismo tem o propósito de ir além.” 

 

Por Mattheus Goto | Matéria publicada na edição 118 da Versatille

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