A nova rota dos restaurantes de Salvador

Na Bahia, produtos de origem estimulam o novo cenário gastronômico, como comprova o chef Fabrício Lemos

Fabrício Lemos, 41, comanda os restaurantes em Salvador
Fabrício Lemos, 41, comanda os restaurantes Origem, Ori, Omi e o minibar Gem (Leonardo Freire)

Tem licuri? Tem. Tem vinho? Tem. Lambreta, cacau e ostra também. A Bahia tem tudo o que lhe convém. Mas cadê que ninguém parecia ver isso em plena Salvador? O dendê e o leite de coco estavam para a gastronomia como o axé para a música. Um som tão alto que encobria o samba de roda ao redor das mesas. Sobre elas – muita calma nessa hora –, moqueca, vatapá e acarajé não vão desaparecer; porém, estão baixando o ego para dividir os ecos nos quatro cantos do mundo.

 

LEIA MAIS

 

Vista desde a capital, a Baía de Todos-os-Santos não descortina o que se passa em suas 56 ilhas. Porém, percorrê-la com quem entende do assunto é uma viagem sem volta. À frente de um bar (o Gem) e de três restaurantes (o Origem, o Ori e o novíssimo Omi, no Fera Palace Hotel), o chef Fabrício Lemos, 41, é capaz de fazer a travessia logo cedo, só para escolher os pescados que servirá em seguida.  

 

É verdade também que, quando chega a Repescar, na comunidade de Baiacu, é capaz de esquecer o tempo. Diante do tanque de ostras da cooperativa, isso fica evidente: “A água altera muito o sabor, precisa ser filtrada com precisão, porque quero usar a ostra do mangue com o padrão de Santa Catarina, que é o que os melhores restaurantes do país usam”.

 

Com dendê e leite de coco, a moqueca do Ori leva muito camarão de pesca sustentável, em Salvador

Com dendê e leite de coco, a moqueca do Ori leva muito camarão de pesca sustentável (Leonardo Freire)

 

De mansinho, ao longo dos últimos anos, Fabrício botou o pé na lama e o olho na água para trabalhar apenas com pesca à linha. As mãos próximas às varas tornaram-no um embaixador da organização, o cara que faz conexões entre ela e a cozinha. Um exemplo? Peixes desprezados já substituem salsicha na merenda escolar. Outro? Os hambúrgueres assinados por Rafael Zacarias, o chef por trás da Bravo, a hamburgueria mais famosa da capital.

 

Mas nem só de mar vive a Baía, tampouco a colheita gastronômica. Pertinho dali, em terra firme, o Quilombo do Tereré aplaca o tempo com práticas ancestrais, como a da farinha de mandioca. Plantada há séculos, descascada pela criançada, prensada repetidamente no moedor artesanal e peneirada, ora é embalada como farinha, ora é tostada para dar vida aos beijus com açúcar e coco.

 

Ostra de mangue

Ostra de mangue (André Fofano)

 

No mesmo terreno, o preparo do dendê é coisa séria. Os coquinhos alaranjados das palmeiras de 15 metros de altura enfrentam o pilão. Escorre uma seiva encorpada, que descansa. A gordura flutua e é aquecida devagarinho até render alguns oleosos mililitros. “Um bom azeite de dendê é o da pessoa que seleciona os frutos maduros, com mais aromas e dulçor. Como um chocolate que depende de um cacau bom, bem tratado”, avalia Lemos.

 

Quiçá por frequentar o candomblé vizinho, quiçá por ser filho de Logunedé, orixá da caça, da pesca, do progresso e da fartura, desde que adentrou o quilombola sua relação com a gastronomia tradicional se intensificou. “A Bahia é o único estado com cinco biomas: cerrado, caatinga, mata atlântica e mais o costeiro e o marinho. Não se trata de uma lista de ingredientes, mas da forma como eles são cultivados e utilizados”, ensina.

 

Preparação da farinha artesanal de mandioca, em Salvador

Preparação da farinha artesanal de mandioca (André Fofano)

 

Nesse sentido, suas expedições têm um gosto especial. Adentrando o Recôncavo Baiano, a herança indígena preserva o fumeiro, carne suína defumada em moquém. Os melhores porcos para o preparo vivem em fundo de quintal, à base de mandioca, como toda a população. Depois de abatidos e curados, junto às folhas da incontornável raiz, convertem-se na maniçoba, prima de segundo grau da feijoada.

 

“Não há como reproduzir toda essa tradição no restaurante, mas dá para fazer bolinhos de maniçoba e servir uma interpretação”, acredita Lemos. Não à toa, entre os snacks do menu degustação do Origem, junto à tapioca com pó de couve e camarão seco e à abobrinha com o mesmo fumeiro, podem dar as caras essas simbólicas friturinhas.

 

Bolinho de baião de polvo, um dos snacks do chef no Origem, em Salvador

Bolinho de baião de polvo, um dos snacks do chef no Origem (Leonardo Freire)

 

“É injusto vender a Bahia por Salvador, Carnaval e dendê. A Bahia deveria ser a terra da galinha ensopada, que é o que mais se come no imenso interior”, filosofa o cozinheiro. E arrebanha a empatia dos vizinhos: “Fabrício não faz comida para turista, ele valoriza a cultura local, tirando a gastronomia do caricato, da moqueca e do acarajé. Ele mostra a diversidade com muito respeito”, exalta Onildo Rocha, o chef mais premiado da Paraíba.

 

Talvez os mergulhos pelos terroirs sejam mais profundos para quem não tinha comida sobrando durante a infância na Cidade Baixa, para quem foi viver em Miami sonhando em ser militar e acabou na Cordon Bleu. Que o diga a imersão na Chapada Diamantina! Uma região de mata atlântica, cerrado e caatinga, de cafés especiais, cajá, umbu, morango, mel de abelha nativa, queijo de cabra, licuri (o coquinho que vira petisco, leite e doce, mas também cosméticos de grifes como a L’Occitane) e vinho. Repetindo: vi-nho. Baianíssimo.

 

Na Chapada Diamantina, a 1.150 metros de altitude, os vinhedos da pioneira Uvva (Divulgação)

Na Chapada Diamantina, a 1.150 metros de altitude, os vinhedos da pioneira Uvva (Divulgação)

 

Prestes a comercializar os primeiros rótulos, a Uvva mantém vinhedos sustentáveis a mais de mil metros de altitude. “Plantamos chardonnay, pinot noir, petit verdot, malbec, cabernet sauvignon e franc que vão ser lançados em tiragem bem pequena. Queremos quebrar os paradigmas do vinho no Brasil”, adianta Fabiano Borré, um dos proprietários da vinícola.

 

“A expedição à Chapada foi na minha terra. Mesmo sendo filha de agricultor, nunca imaginei ver mais de 300 famílias produzindo morango. Nem tomar um cabernet maravilhoso. É comovente ver isso na gastronomia baiana”, revela Ieda Matos (da paulistana Casa de Ieda), que integrou a trupe de Lemos.

 

Uva em vinhedo na Chapada Diamantina

Uva em vinhedo na Chapada Diamantina (Divulgação)

 

Viagens assim já locomoveram outros colegas também, como Thomas Troisgros (TT Burger, Chez Claude e Três Gordos), Marcelo Corrêa Bastos (Jiquitaia, Vista e Lobozó), o peruano Renzo Garibaldi (Osso, o 9º melhor restaurante da América Latina) e Thiago Bañares (Tan Tan, Ototo e Kotori).

 

In loco, a movimentação prolifera: Edinho Engel, dono do Amado, um dos mais festejados restaurantes soteropolitanos, se valeu das pesquisas de Lemos dentro de sua cozinha, anos atrás. Hoje mantém-se alinhado às safras dos produtos locais.

 

LEIA MAIS

 

“Sem esquecer que a Bahia é muito maior que a Baía [de Todos os Santos], Fabrício mobiliza a nova geração”. O elogio de Ricardo Silva, chef do Restaurante Carvão e da Pi.zza, poderia soar falso, afinal, o colega é fã das redondas de estilo napolitano e dos drinks dessa última, sobretudo os que levam Tanajura, gim com cacau, dendê e molejo baiano. Porém, não é isso: Silva vê nas incursões do colega um reflexo da efervescência da culinária local.

 

Nessas entra a confeitaria, seja a afetiva e frutada de sua esposa, Lisiane Arouca, dentro dos restaurantes, seja a de Fabiane Teixeira. À frente da Casa Ópera e da Trópico, ela não se contentou em usar chocolate de qualidade, decidiu fazer as próprias barras com matéria-prima que ela compartilha com o über chef Alain Ducasse: “Nossas amêndoas recebem um tratamento especial desde a roça do João Tavares, da Fazenda Leolinda de Ilhéus. Lá elas são colhidas no momento certo, fermentadas por dias e secas ao sol. No ateliê, cuidamos de todo o restante até o chocolate chegar a quem vai comer”.

 

A hotelaria tampouco fica de fora: se Fasano já havia inovado ao estrear em plena Praça Castro Alves, menu e empório autografados por Tereza Paim dão um passo além. Embora mais clássica, a cozinheira é outra investigadora de tradições e as revela não só para a grife hoteleira, mas na linha Tabuleiros da Chef, sucesso nos aeroportos internacionais do país e em lugares como a Casa Santa Luzia, em São Paulo: “Busco louvar o melhor das nossas farinhas, frutas e pimentas com conhecimento histórico e carinho”.

 

Na quadra de cima, um pouco mais perto do Pelourinho, o Fera Palace nasceu como um hotel urbano de charme. Notou rapidamente que, se a cozinha não esbanjasse graça, perderia seu encanto. Resultado: contratou o onipresente Fabrício Lemos para instaurar o novíssimo Omi e servir chips com lagosta, baião de camarão e deliciosidades que só reforçam o grande momento da cozinha baiana.

 

Por Fernanda Meneguetti | Matéria publicada na edição 121 da Versatille

Para quem pensa em ir para o Japão em busca de uma nova vida, também poderá procurar empregos aqui.